É bem conhecida a devoção do culto mariano no mundo católico, uma crença que resulta da longa sedimentação de remotas referências ligadas aos cultos matriciais femininos da deusa terra, dominantes nas culturas mediterrâneas. A longa solidificação dessas influências nas variantes da religiosidade popular, ao longo de milênios, conduziu à forte convicção de que as experiências religiosas implicadas nas chamadas “aparições marianas” seriam totalmente alheias a qualquer tipo de interpelação científica, sobretudo por parte das disciplinas mais físicas, entre as quais a psicofisiologia, a medicina, a psicologia clínica e correlatas. Se, em 1917, em Fátima, no ignorante e rural interior português, as precárias condições e impotências do conhecimento científico da época acabaram por remeter para o mundo da fé todo um potencial conjunto de fenômenos físicos e psicológicos, já mais recentemente foi possível reverter essa lógica de abdicação graças à inquirição médica desencadeada a pretexto das aparições marianas de Medjugorje, antiga Iugoslávia, no início da década de 80.
A longa resistência das atitudes mentais destilou a idéia – ainda majoritária na opinião dos católicos marianos – de que as facetas extraordinárias das tais aparições marianas estariam perfeitamente limitadas ao domínio confessional, impedidas de serem investigadas racionalmente. É curioso que essa idéia de impossibilidade ou interdição de uma investigação por parte de várias modalidades científicas procedeu tanto de vozes pseudo-racionais e agnósticas, como de fiéis e prosélitos da leitura fundamentalista das visões marianas. Em vez disso, recebemos estimulantes incentivos por parte de setores da intelectualidade católica, independentes da hierarquia da igreja de Roma.
Projeto Marian — Para investigar cientificamente os fenômenos marianos foi criado o Projeto Marian, sigla de Multicultural Apparitions Research International Academic Network ou Rede Acadêmica Internacional e Multicultural de Pesquisa das Aparições. E é importante esclarecer, no entanto, que não existe por parte desse autor nem dos investigadores do fenômeno qualquer animosidade quanto ao modo como as grandes instituições religiosas tentaram subjugar, no passado, territórios que pertenciam, em exclusivo, à ciência. A avaliação que fazemos no contexto do Projeto Marian pretende ir além dessa dicotomia artificial. Não se rejeita o lugar da fé nem a importância da espiritualidade na vivência integral dos seres humanos.
Infelizmente, esta última é uma dimensão pouco visível no atual comércio em que se transformaram as graças e os milagres, na troca de benesses materiais imediatas que fazem lei nos santuários marianos de todo o mundo. Quem se sente em condições, hoje, de ditar o que é matéria de fé, excluindo-o de outras interpelações, esquece que o trovão e o relâmpago já foram considerados manifestações de divindades raivosas com o comportamento humano. Assim, na abordagem dessas modalidades incomuns da experiência humana, o que nos importa é o real comportamento do ser humano frente aos seus próprios limites e à experimentação global, psicofísica e espiritual daquilo que é inefável e misterioso. Importa, isso sim, é não subestimar uma regra que tem dado provas de sua eficácia no decurso dos milênios da existência do ser humano – o progresso da ciência, de que a respectiva história é testemunha.
Por isso, estamos hoje em condições de propor novas perspectivas de entendimento das aparições marianas que vão além do escopo tradicional das ciências humanas e sociais, ou seja, às abordagens da antropologia física, religiosa, cultural e da sociologia, cujos estatutos de intervenção têm sido tolerados nas tímidas incursões a esse rico legado das “experiências humanas extraordinárias” – como são as do foro da religião popular, entre as quais se contam os episódios clássicos de Fátima, de 1917. E sabemos que são tímidas e limitadas as investigações levadas a cabo pelos institutos católicos, a quem caberia boa parte das responsabilidades nesta matéria. Uma ou outra tentativa de análise detalhada tem-se defrontado com o compromisso de caráter religioso e confessional, que é a interpretação católica oficial dos eventos ocorridos na Cova da Iria, em Fátima. Daí decorrem as dificuldades de se isolar todo o vasto acervo relativo às aparições marianas portuguesas do começo do século passado.
Progresso da Ciência — A antologia Fátima e a Ciência – Investigação Multidisciplinar das Experiências Religiosas [Editora Ésquilo, 2003] resultou da reunião de propostas de investigação multidisciplinar decorrentes do Projeto Marian, coordenada pelo Centro Transdisciplinar de Estudos da Consciência (CTEC), alojado na Universidade Fernando Pessoa, em Porto, Portugal. À sua frente estão este autor, além de Fernando Fernandes e Raul Berenguel, que assinam como organizadores da obra, uma vez que ela conta com a participação de inúmeros estudiosos de várias nacionalidades e especialidades.
O Projeto Marian, de caráter internacional, tem o objetivo de obter mais e cada vez melhores resultados que possam ser usados no aperfeiçoar do ser humano e seu entendimento do desconhecido. Apesar de todos os obstáculos para se chegar lá, movidos por intolerâncias de todos os tipos, os integrantes do projeto estão certos de que a antologia Fátima e a Ciência ajudará a introduzir uma terceira via para compreensão das aparições marianas e manifestações visionárias em geral. A obra reúne 15 textos de investigadores que fazem uma análise das experiências humanas extraordinárias, como as populares viagens astrais (OBE), partindo do quadro fenomenológico de Fátima. Entre os autores estão o matemático franco-americano Jacques Vallée e o professor belga Auguste Meessen, físico teórico da Universidade Católica de Louvaine. Meessen é conhecido por sua investigação dos pressupostos neurofisioló
;gicos da visão implicados no chamado “milagre solar”, de 13 de outubro de 1917, em Fátima.
Fátima e a Ciência é a primeira abordagem do gênero que inclui interessantes análises do ponto de vista da sociologia, história, antropologia, biologia e medicina, que resultou do Projeto Marian. Os colaboradores da obra foram convidados a partilhar suas teses e hipóteses sobre essas questões, e o fizeram de um modo espontâneo, com o objetivo de aprender uns com os outros. Quem sabe os leitores façam parte desta partilha. Os interessados podem consultar e adquirir a obra através do site da Ésquilo Editora: www.esquilo.com/esquilo.html.