O que a paleontologia, uma ciência de fato, e a Ufologia, buscando seu reconhecimento, com empréstimos da ciência, têm em comum? Ambas trabalham sobre fenômenos que escapam do meio humano, mas com ele interagem. Fenômenos sobre os quais existem poucas evidências ou testemunhos, e que se apóiam, portanto, em hipóteses de difícil comprovação e, logo, estão sempre sujeitas, mais que outras ciências, a revisões drásticas. Uma semelhança de menor importância é que, muitas vezes, seus praticantes e os meios de comunicação ignoram essa fragilidade e transmitem ao público leigo, como “verdades”, teorias – verossímeis ou não – que podem ser invalidadas já na semana seguinte – em favor de outra “verdade” de ocasião. Contudo, na minha modesta opinião, o que ambas têm de mais semelhante é a forma como revelam o alto conceito que o ser humano tem de si mesmo.
Há muitos anos, li no hoje extinto Jornal do Brasil, no suplemento de domingo, uma entrevista de um ufólogo respondendo sobre por que, afinal, seres tão evoluídos como os extraterrestres, com um suposto desenvolvimento tecnológico e inteligência tão avançados que lhes permitiria viagens intergalácticas e visitas periódicas a seus vizinhos menos brilhantes, seriam capazes de atitudes tão baixas como abduções e experiências que os comitês de ética humanos não permitiriam. A resposta dele foi uma obra-prima: “Aparentemente, a moralidade alienígena não acompanhou seu desenvolvimento cognitivo e tecnológico” [1].
Eu, que já era protovegetariano à época, pude sentir que havia uma certa inconsistência no pensamento do “pesquisador”, demonstrando cabalmente suas credenciais como cientista. Desde então, já vi afirmações da mesma natureza em documentários de TV e reportagens sensacionalistas. Justiça seja feita, nem todos os ufólogos se mostraram tão obtusos e outros foram capazes de enxergar que as concepções morais dos alienígenas não são assim tão diferentes das da nossa espécie.
Esse confronto entre a nossa moral e a moral alienígena é, na verdade, um confronto com os limites da nossa própria moral, que já foi explorado de modo direto pela literatura, como no caso do romancista Milan Kundera, numa daquelas passagens que não me canso de citar:
“O direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa sobre a qual a humanidade inteira manifesta acordo fraterno, mesmo durante as guerras mais sangrentas. Esse direito nos parece natural porque estamos no topo da hierarquia. Mas bastaria que um terceiro se intrometesse no jogo, por exemplo, um visitante vindo de um outro planeta a quem Deus tivesse dito: “Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas”, para que toda a evidência do Gênese fosse posta em dúvida. O homem atrelado a uma carroça por um marciano, eventualmente grelhado no espeto por um habitante da Via Láctea, talvez se lembrasse da costeleta de vitela que tinha o hábito de cortar em seu prato e pediria (tarde demais) desculpas à vaca” [2].
Rafael Jacobsen explorou a mesma temática num miniconto que recomendo vivamente. Com um pouco mais de reflexão crítica, portanto, entendemos que os extraterrestres não são seres monstruosos desprovidos de qualquer entendimento moral. Eles simplesmente o aplicam de modo diferenciado. Diferenciado, tendo com referência sua própria espécie. Vêem a si mesmos, portanto, de modo especial. De modo especista. Eles têm uma moral hierarquizada, que os coloca no topo da escala, e todos os demais seres – inclusive nós, pobres humanos – são subsidiários nessa hierarquia.
É muito provável que os alienígenas tenham preocupações éticas com os seres humanos. É até provável que eles tenham comitês de ética que persigam redução, refinamento e substituição dos experimentos científicos que usam humanos como cobaias. Infelizmente, nem todos esses experimentos têm métodos substitutivos, e proibi-los seria impedir o magistral desenvolvimento tecnológico de sua espécie, impedindo-os de alcançar respostas prementes para suas indagações científicas, tratamentos para suas doenças, e até mesmo os benefícios que a espécie humana extraiu dos cruzamentos seletivos entre essa espécie superior e nós mesmos, que permitiu nossa própria evolução cognitiva e tecnológica. Assim, é também para o nosso próprio bem que esses magníficos seres conduzem os experimentos que nós, ingratos, vemos como aberrações morais.
Plausíveis e embaraçosas- No que concerne à paleontologia, me vêm à mente duas grandes incógnitas da pré-história: a extinção do homem de Neanderthal e do mamute. Não existe acordo entre os paleontólogos sobre o que causou o desaparecimento dessas espécies. Mudanças climáticas, é uma das teorias. O fim da Era do Gelo pode ter sido fatal para estas espécies melhor adaptadas aos climas mais frios. De todo modo, justiça seja feita, nesse campo o ser humano até trabalha com hipóteses um pouco mais plausíveis e compatíveis com seu próprio desenvolvimento moral. É sabido que essas duas espécies foram contemporâneas do Homo sapiens, e alguns teóricos aceitam a hipótese de que, ao menos em parte, nós tivemos uma participação no processo. Sem as modernas técnicas de criação de animais, nós caçamos os mamutes indiscriminadamente, até a sua extinção, mais ou menos como acontece até hoje.
No caso do homem de Neanderthal (Homo neanderthalensis), porém, essa constatação é causa de assombro e embaraço entre alguns que acreditam na possibilidade de uma co-participação (senão responsabilidade) do Homo sapiens na a extinção dos seus primos desafortunados. Como pudemos destruir seres tão próximos de nós? Ora, não é preciso olhar muito longe para perceber que isso também acontece até hoje. Como disse no último texto, somente no século XX, quando atingimos o ápice de nosso desenvolvimento tecnológico, nós fomos muito bem sucedidos em aplicar todo esse desenvolvimento nas guerras mais destrutivas da história, e alguns genocídios. É bem verdade que falhamos na nossa perseguição da completa eliminação física de certos povos ou classes sociais. É por isso que a modéstia talvez nos exija aceitar que não fomos os únicos responsáveis. A mãe natureza também deu uma ajudinha. Seja como for, a própria teoria da evolução ex
plica que, quando duas espécies diferentes competem pelos mesmos recursos, ambas entram em choque, e há um desequilíbrio, até que uma delas prevaleça e a outra, adapta-se ou é extinta. A guerra encontra, assim, uma explicação – mas não uma justificativa – em Darwin.
Os dois temas me vieram simultaneamente à mente graças a uma matéria no jornal O Globo de terça-feira, dia 14 de setembro, intitulada No Reino dos Híbridos [3]. Ela trata do nascimento de indivíduos híbridos de diferentes espécies, cujo parentesco genético permite a geração de crias, tais como cruzamentos de zebras e cavalos, búfalos e bovinos, leões e tigres. Segundo a matéria, esses eventos não seriam incomuns na natureza. Ela fala de “um urso de pelos brancos, idêntico ao urso polar, não fosse por suas garras gigantes e manchas marrons em algumas partes do corpo. Um exame de DNA provou que o animal era uma mistura de duas espécies”. Ah, sim. O urso foi encontrado (e morto, obviamente) por um caçador.
Duro golpe, em nós mesmos – Mas o fato é que a maioria dos casos de híbridos conhecidos resultou de interferência direta da curiosidade humana, do cruzamento seletivo (e forçado) de espécies em cativeiro. É difícil pensar numa zebra sendo cortejada por um cavalo, ou uma leoa caindo nas graças de um tigre – afinal, são animais que vivem em habitats totalmente distintos. A importância dessa experiência é demonstrar a viabilidade do cruzamento entre o Homo sapiens e o Homo neanderthalensis, como alguns paleontólogos já especulam. Dadas certas circunstâncias, esses híbridos podem ter uma vantagem adaptativa sobre o original, como no caso das tais mudanças climáticas que vitimaram o calorento homem de Neanderthal.
Nada disso é essencialmente diferente do que os alienígenas alegadamente fizeram, ou fazem, conosco, como pode perceber qualquer observador com o desenvolvimento cognitivo de um ser humano médio (o que aparentemente exclui uma parte da comunidade ufológica). Há, no máximo, duas diferenças superficiais: primeiro, eles, ao contrário de nós, não vêem, aparentemente, nada de errado em ter como “amostra” da experiência “exemplares” de sua própria espécie. Existem algumas alegações de que já se tentou cruzar humanos com chimpanzés ou gorilas [4]. Nada foi comprovado até hoje, mas honestamente, dado nosso “desenvolvimento” moral, não duvido que seja verdade. O segundo fator é que, bem, nesse caso a espécie “inferior” somos nós, seres humanos. Então, se os alienígenas fazem isto com humanos, isto deve ser imoral. Nossa intuição nos diz isso – o que mostra que nossa intuição está, em algum momento da comparação, um pouquinho, ao menos, embotada. Em qual dos casos será?
Se os alienígenas, ao invés, nos convidassem para um alegre simpósio interplanetário sobre métodos de melhoramento genético de gado de corte, ou descobertas sobre o cruzamento inter-espécies como meio de estudo da evolução, nós certamente participaríamos com muito interesse, apresentando nossos próprios estudos e discutindo informalmente nossas teorias nos coffee breaks regados a vinho branco e com deliciosas iguarias como pasta de fígado de ganso e caviar.
Na mesma edição do mesmo jornal, algumas páginas antes, li uma matéria sobre a apreensão de porcos criados nas proximidades do aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro [5]. A criação era ilegal, e o lixo gerado – incluído aí as vísceras dos animais – atraía urubus, causando risco de acidentes aéreos. As fotos mostram os funcionários da Secretaria de Meio Ambiente laçando os infelizes, inclusive alguns filhotes. O destino dos animais é declarado de forma blasé, quase incidental, como se fosse a coisa mais natural e banal do mundo: após uma quarentena, para garantir que não são portadores de doenças, os porcos serão abatidos.
Pseudes [falso] sapientes – Bem, não deixa de ser natural. E definitivamente é banal. É o mesmo destino de bilhões de outros animais. Agora, será ético? Será justo? Será que nosso conceito de ética e justiça não apresenta, aí, uma deficiência tão flagrante que, se fosse empreendida por outra espécie (digamos, extraterrestres), ou contra outra espécie (digamos, outros Homo sapiens ou Homo neanderthalensis), seria considerado definitivamente amoral e injusto? Claro, muitos afirmam que os conceitos de moral e de justiça não se aplicam aos animais. Geralmente eles se baseiam num discurso pseudofilosófico e pseudojurídico, de origem teológica, e que mal consegue disfarçar sua inconsistência e incoerência:
Mas a falha fundamental na teoria de diretos dos animais é muito mais básica e efetiva. (…) indivíduos possuem direitos (…) em virtude de uma análise racional da natureza do homem e do universo. Em resumo, o homem tem direitos porque eles são direitos naturais. Eles são fundamentados na natureza do homem: a capacidade individual do homem de escolha consciente (…). Deste modo, enquanto direitos naturais, como temos enfatizado, são absolutos, há um sentindo no qual eles são relativos: eles são relativos a espécie humana. (…). A passagem bíblica foi compreensiva no sentido de que ao homem foi “dado” – ou, como dizemos no direito natural, o homem “tem” – o domínio sobre todas as espécies da Terra. A lei natural é necessariamente limitada à espécie. (grifos do autor) [6]
É. Definitivamente, o ser humano tem um conceito desmedidamente alto de si mesmo.
Notas
[1] Infelizmente não vou poder citar a fonte, pois não guardei a cópia e não tenho memória de uma data mais precisa da sua publicação do que cerca de duas décadas. Quem sabe com um financiamento dos fundos de pesquisa eu possa gastar alguns meses vasculhando os arquivos da Biblioteca Nacional para encontrá-la…
[2] KUNDERA, Milan. A Insustentável Leveza do Ser. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 322.
[3] O GLOBO. No Reino dos Híbridos. Rio de Janeiro, quarta feira, 15 de setembro de 2010, p. 34.
[4] O ditador soviético Iossif Stalin, um dos meus ídolos, segundo algumas fontes, teria autorizado tal experiência. Seria mais uma demonstração de sua genialidade e sanidade. Mas, até segunda ordem, tudo não passa de especulação.
[5] O GLOBO. Secretaria acaba com criação de porcos que ameaçava aviação na Ilha. Rio de Janeiro, quarta feira, 15 de setembro de 2010, p. 19. Na mesma edição, na mesma página, a matéria Pinguins invadem a Região dos Lagos dá conta do resgate de pinguins, tartarugas e um filhote de golfin
ho naquela região do estado do Rio de Janeiro. Segundo um habitante local, “Os turistas ficaram chocados com o sofrimento dos pinguins no fim de semana. É preciso que seja criado um serviço para o recolhimento e tratamento urgente dos animais”. Do ponto de vista do ambientalismo antropocêntrico, nenhuma incoerência, de verdade. Do ponto de vista daquilo que, para muitos filósofos, é o fundamento da moral – a compaixão – a incoerência e o especismo seriam, novamente, evidentes, não fosse a esquizofrenia moral que assola o tal Homo “sapiens”.
[6] ROTHBARD, Murray N. Os “direitos” dos animais. In: A Ética da Liberdade. Sem data. Disponível em: http://www.mises.org.br/EbookChapter.aspx?id=25. O autor ignora que os mesmos argumentos foram, no passado, usados para excluir outros seres humanos da comunidade moral, tanto do ponto de vista da racionalidade – mulheres e africanos seriam “menos racionais” – quanto do ponto de vista da sociabilidade – os estrangeiros e indivíduos fora do “contrato social”. Ao explicar a moralidade com base na natureza humana, o autor também está dialogando com a paleontologia: “Que o conceito de uma ética de espécie é parte da natureza do mundo pode ser verificado, além disso, ao se contemplar as atividades das outras espécies na natureza. Não é só uma brincadeira chamar a atenção para o fato de que animais, no fim das contas, não respeitam os “direitos” dos outros animais; é a condição do mundo, e de todas as espécies naturais, que eles vivem de se alimentar de outras espécies. Sobrevivência entre as espécies é uma questão de dentes e garras. (…). Qualquer conceito de direitos, de criminalidade, de agressão, só pode se aplicar a ações de um homem ou grupo de homens contra outros seres humanos. A quem tiver curiosidade e estômago para ler o texto integral, o autor também não escapou ao “argumento alienígena”.