Vivemos tempos difíceis, com a doença e a morte sendo noticias todos os dias aos milhares ao redor do planeta. Há quarentenas e em alguns locais as pessoas estão trancadas em lockdowns sem tempo para terminar. Isso gera medo. E o medo é justamente o terreno dos teóricos da conspiração, que agora vendem a salvação a preços módicos. Cuidado
O que segue abaixo é a segunda parte parte de um longo artigo de MJ Banias, publicado pelo site Motherboard, um dos segmentos do conhecido site Vice, sobre como pessoas ligadas à Ufologia e às teorias da conspiração têm se transformado em pseudo líderes espirituais e guardiões de coisa alguma, apenas para ganhar dinheiro, vendendo purpurina. Como a reportagem é muito longa, vamos publicá-la em partes. Você pode ler a primeira postagem aqui.
Religiões ufológicas
Marshall Applewhite Crédito: Arquivo Revista UFO
“Linguagem e referências religiosas são ‘incorporadas’ à cultura dos UFOs porque, historicamente, pessoas de muitas culturas olharam para o céu e viram coisas que despertaram admiração”, disse Diana Pasulka, professora de filosofia e religião da Universidade Wilmington da Carolina do Norte e autora de American Cosmic: UFOs, Religion, Technology [Cósmica Americana: UFOs, Religião e Tecnologia. OUP, 2019].
Ela explicou que eventos aéreos estranhos eram frequentemente vistos como presságios do “fim dos tempos ou como apocalípticos”.
Desde o início dos anos 50, inúmeras religiões ufológicas surgiram. L. Ron Hubbard criou a famosa e ainda próspera Igreja da Cientologia, cujos fundamentos divulgam o soberano alienígena Xenu como sendo a fonte de toda a vida na Terra.
O Movimento Raeliano, fundado por Claude Vorilhon em 1974, ainda hoje ensina que a vida na Terra foi semeada por extraterrestres chamados Elohim.
Naquele mesmo ano Marshall Applewhite fundou o Heaven’s Gate. Uma mistura entre ensinamentos bíblicos e profecia, crenças esotéricas, gnosticismo e ficção científica, o culto virou manchete internacional em 1997, quando Applewhite e 38 de seus seguidores morreram por suicídio coletivo, esperando que suas almas renascessem em uma espaçonave alienígena atrás do cometa Hale-Bopp.
Ufologia, internet e morte
Barbara Rogers após ser presa pela morte do namorado
Crédito:WNEP
O surgimento da internet e das redes sociais mudou a maneira como esses grupos funcionam e recrutam. Os grupos religiosos ufológicos atuais parecem estar se formando na estranha interseção entre a mídia marginal, a disseminação viral de conteúdo on-line e a disposição de uma comunidade de acreditar nas palavras dos gurus. E houve trágicas consequências.
Em 2012, Kelly Pingilley, uma seguidora da líder de culto Sherry Shriner, ficou tão aterrorizada que o apocalipse alienígena estava chegando, que cometeu suicídio, com uma overdose de pílulas para dormir.
Uma mistura bizarra de evangelismo cristão e obras dos autores sobre alienígenas e conspirações David Icke e Bill Cooper – com alguma semelhança com as teorias propostas em um documentário de 2018, de Wilcock e Goode –, os ensinamentos de Shriner pregavam a existência sombria de alienígenas reptilianos malignos que em associação com satanás controlariam os governos do mundo.
O culto existia inteiramente nas redes sociais e no YouTube e Sherry alegava ser uma mensageira enviada por Deus para salvar a humanidade da aniquilação alienígena. À época Sherry disse a jornalistas que Pingilley fora assassinada pela OTAN.
Em 2017, Steven Mineo foi baleado e morto por sua namorada Barbara Rogers devido a sua rivalidade com Sherry, que havia dito a seus seguidores que Barbara era uma reptiliana maligna. Mineo se voltou contra Sherry e, após uma série de discussões on-line, foi assassinado por Rogers.
Em meados de dezembro de 2017, Brent Wilkins, um seguidor do guru da Nova Era, promovedor de alienígenas e conspirações Bentinho Massaro, saltou de uma ponte em Sedona, no estado do Arizona, em um retiro liderado por Massaro.
Enquanto Massaro não assume qualquer responsabilidade e nunca foram apresentadas acusações contra ele, a família de Wilkins o culpa pelo suicídio do filho.
“A Internet criou uma realidade virtual em que as pessoas podem morar em suas próprias casas ou em seus próprios apartamentos, mas estão mentalmente isoladas de todos os outros”, disse Steven Hassan, autor de Combatting Cult Mind Control e The Cult of Trump [Combatendo o Controle Mental dos Cultos e O Culto de Trump. Free Press, 2019].
“A velha noção de que você precisa estar em algum retiro hindu isolado na floresta em algum lugar não é mais necessária na era dos smartphones e da internet. É o que está acontecendo aqui”, explicou Hassan.
Líder espiritual não, por favor
David Wilcock. Crédito: YouTube
Wilcock e Goode não pedem que as pessoas abandonem sua família ou se mudem para uma comuna. Eles geralmente afirmam que não são líderes espirituais e explicam que todos são seus próprios salvadores.
Por outro lado, Wilcock declarou publicamente que seu contato alienígena, que às vezes se assemelha a Obi-Wan Kenobi, de Star Wars, vem lhe dizendo a vida toda que ele “se tornaria uma figura espiritual muito famosa”. Ele também afirmou que tem visões proféticas incrivelmente precisas.
Goode, por sua vez, afirma ser um Enoque dos tempos modernos, quem em Gênesis é escolhido para viver com Deus. O que exatamente eles estão fazendo se não agir como líderes espirituais não está claro. O que está claro é que eles não querem ser descritos dessa maneira.
Doações, cursos e produtos
Corey Goode Crédito: YouTube
O jornalista e designer de conteúdo australiano Daniel James vem pesquisando o trabalho de Wilcock e Goode há vários anos. Depois de se submeter a um tratamento médico prolongado, James estava convalescendo no hospital quando encontrou os vídeos alternativos sobre espiritualidade e consciência da Nova Era. O algoritmo do YouTube começou a fornecer algumas recomendações esotéricas de vídeos e James decidiu dar uma olhada.
“Por curiosidade, decidi assistir a alguns dos vídeos mais ‘radicais’. Inicialmente, descobri David Wilcock, depois Corey Goode, e não demorou muito para encontrar dezenas desses ‘palestrantes’ que proclamavam ter respostas para a consciência e muito mais”, disse James ao Motherboard em uma entrevista.
James rapidamente entendeu o que estava acontecendo. Inicialmente, ele admite, ele se divertiu um pouco.
“Imediatamente meu detector de conversa fiada disparou, mas eu continuava assistindo, pois era fascinante para mim que existisse todo um grupo de figuras públicas que criara seu próprio folclore, com tópicos interligados de extraterrestres bizarros, como algo saído de um filme de George Lucas, os Illuminati, nazistas no espaço, QAnon e tudo mais”, disse James.
Logo, porém, ele percebeu que muitas pessoas estavam levando ess
e conteúdo a sério.
“Vi o dano real que estava sendo causado. As pessoas queriam acreditar tanto em suas histórias que abriam suas carteiras em todas as oportunidades para apoiá-las”, disse James. Os seguidores faziam doações generosas, pagavam cursos espirituais e compravam produtos.
Arrancando máscaras
Os perigosos cultos aos ETs Crédito: Revista UFO
“Eles estão operando como um culto”, disse James, “e ostentam seguidores dedicados igual ao que acontece em cultos”. Desde então, James iniciou seu próprio canal no YouTube que examina alegações feitas por populares teóricos da conspiração e as desmascara.
“Seus dedicados fiéis são absorvidos pela ideologia coletiva e, às vezes, vão a extremos para provar sua dedicação”, disse o jornalista. Em junho de 2019, ele recebeu ameaças de morte pelo Twitter de um seguidor. Por causa de um vídeo que ele postou sobre Wilcock e Goode.
Stina Ferrante é YouTuber e ex-seguidora de Wilcock e Goode. A perda da mãe e da avó em um intervalo de sete meses a deixou em busca de algo. Isso a levou aos dois líderes de seita.
“Naquela época da minha vida, eu estava cuidando da minha mãe e de cachorro moribundos, minha avó tinha acabado de morrer e meu filho estava na idade em que seus problemas neurológicos começaram a ficar aparentes”, disse ela. “Eu estava sufocada de estresse. Eu também desenvolvi um problema de tireoide, e quando você já está com ansiedade da morte devido a tantas pessoas morrendo ao seu redor, encontrar algo como espiritualidade me confortou durante esse período da minha vida. Eu caí de cabeça no fundo do poço”.
De acordo com uma declaração em seu canal no YouTube, “esse grupo de revelação da Nova Era, Ufologia, teorias da conspiração e espiritualidade era tudo o que eu precisava para lidar com a vida”.
Com o passar do tempo, porém, ela começou a perceber que “as coisas não eram o que pareciam”. Ela explicou que havia uma clara contradição em suas constantes alegações de não serem nada de especial, mas afirmando que eram representantes de seres de “consciência superior”.
“O público deles tem uma fé cega que geralmente é reservada apenas para uma divindade, mas que é dada a esses dois caras mortais”, disse Ferrante ao Motherboard. Com apoio, ela se libertou do que descreve como “um culto”.
(Fim da segunda parte)
Fonte: Vice