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A República de Uganda, pelos dados de 1996, contava com uma população de 20,2 milhões de habitantes, dos quais 62% cristãos, 19% praticantes de cultos tradicionais africanos e 15% muçulmanos. O inglês era o idioma oficial, mas muitos continuavam falando as línguas nativas. A expectativa de vida não excedia os 42 anos. Ocupando a 147ª posição – em uma lista de 175 países – no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da Organização das Nações Unidas (ONU), que mede o desenvolvimento com base na expectativa de vida, no nível educacional e na renda per capita, Uganda apresentava 13 bolsões de pobreza, assim como o Brasil, que ocupava a 65ª colocação. Kanungu ficava numa área isolada, 350 km a sudoeste da capital, Kampala, próxima da conturbada fronteira com a República Democrática do Congo – ex-Zaire – e de Ruanda, onde mais de 800 mil pessoas morreram em 1994 no maior genocídio depois da Segunda Guerra Mundial.
Alegado profeta — Em meio a esse contexto de caos, violência, miséria, anomia, desalento e desespero, não era de surpreender que as seitas apocalípticas estivessem se proliferando rapidamente no país, concorrendo com as práticas tradicionais animistas e de vodu arraigadas principalmente nas regiões afastadas dos centros urbanos. Alarmadas, as autoridades tomaram, nos últimos meses de 1999, medidas de caráter repressivo e prenderam dirigentes de cultos suspeitos pelo desaparecimento de várias crianças. Em setembro, policiais encontraram em um acampamento em Bakoto, 45 km ao norte da capital, uma vala comum com corpos em decomposição de 24 pessoas, adeptos da seita apocalíptica denominada Última Mensagem de Advertência Mundial, com mil membros.
A seita, dirigida por um alegado profeta que havia anunciado publicamente o fim do mundo para o final de 1999, foi fechada e seus líderes detidos sob a acusação de assassinato, estupro, seqüestro e cárcere privado, inclusive de crianças. Em novembro, a Polícia de Uganda dispersou uma reunião ilegal de outra seita, formada por adeptos da jovem Nabassa Gwajwa, de apenas 19 anos. Ela afirmava que havia morrido em 1996, mas que Deus a enviara novamente à Terra para levar o seu povo ao arrependimento antes do ano 2000. De fato, os que a seguiram se arrependeram amargamente.
O clima de perigo era sentido no ar e em todas as partes se prenunciava o que seria o maior caso de homicídio-suicídio coletivo desde Jonestown, na Guiana, em 1978, quando, sob as ordens de Jim Jones, 904 de seus seguidores ingeriram suco de frutas envenenado. O reverendo norte-americano havia deixado uma inscrição sobre seu altar que dizia: “Aqueles que esquecem o passado estão condenados a repeti-lo”. Naquela sexta-feira, 17 de março de 2000, mais de 400 seguidores da seita apocalíptica Movimento pela Restauração dos Dez Mandamentos de Deus, condenaram-se a repetir o passado, de maneira tão trágica quanto.
Na quarta-feira, os fiéis participaram de uma festa na sede da igreja, em Kanunga, à 320 km de Kampala, para onde levaram seus objetos pessoais e dinheiro. Na quinta-feira, despediram-se de parentes e amigos nas aldeias vizinhas e, na sexta-feira, rezaram e entoaram cânticos durante duas horas, fecharam com pregos todas as portas e janelas, embeberam seus corpos em gasolina e, finalmente, atearam fogo. Muitos teriam sido ajudados nessa tarefa pelo líder, Joseph Kibwetere, de 68 anos, que previu o fim do mundo para o dia 31 de dezembro de 1999, mas como sua profecia falhou, seus seguidores começaram a pressioná-lo e exigir seu dinheiro de volta. Então, uma nova data foi marcada por ele e, desta vez, não poderia haver erro. “A cena é horrível. Há só dois ou três cadáveres de que se pode dizer que são homens ou mulheres. Os demais não têm forma humana”, descreveu o porta-voz policial Asuman Mugenyi. As autoridades suspeitavam que muitos dos fiéis não sabiam o que iria ocorrer quando foram trancados no recinto. Por causa disso, e pelo fato de haver 78 crianças entre os mortos, a polícia classificou o caso como de suicídio e homicídio coletivo. “Eles sabiam que iriam morrer no dia 17 porque a Virgem Maria lhes havia prometido apresentar-se no templo de manhã para levá-los ao céu”, comentou uma residente de Kanungu.
Ritual de imolação — A descoberta, em 20 de março, de corpos recém-enterrados no terreno da igreja, confirmou as primeiras suspeitas das autoridades de que a tragédia fazia parte de uma seqüência de crimes. Em várias fossas ou valas comuns, cavadas por prisioneiros da cadeia local, sob o olhar de parentes, amigos e curiosos que seguravam galhos de alecrim contra o nariz para suportar o forte odor exalado pelos corpos, jaziam inúmeros cadáveres cobertos com cimento fresco. Foram ainda localizadas covas no meio de uma horta, também no terreno da igreja. Os corpos não apresentavam ferimentos, o que indicava terem sido possivelmente estrangulados ou envenenados. “Outros tinham feridas na barriga e outros indícios de que foram cortados com facões”, disse um porta-voz da polícia. Especulava-se que se tratavam de pessoas que no último minuto se arrependeram e não quiseram mais suicidar-se.
Os que não tinham idade suficiente para decidir sobre suas vidas, foram, certamente, conduzidos inconscientemente à morte. O ministro ugandense do Interior, Edward Rogumayo, disse que foram contados 330 crânios. Os demais corpos estavam tão queimados que muitos foram reduzidos, quase que completamente, a cinzas. Não houve confirmação se Kibwetere estaria entre os mortos e desconhecia-se o paradeiro de dois de seus “teólogos”, os sacerdotes dominicanos Dominic Kataribabo e John Kamagara. O filho de Kibwetere, Maurice Rugambwa, afirmou que o líder da seita certamente teria morrido com seus seguidores. Rugambwa disse que seu pai havia enviado uma carta para sua mulher, Theresa – a primeira em três anos –, com muitos livros, anunciando o suicídio. Na carta, Kibwetere pedia à mulher que mantivesse a fé “porque os membros do culto morrerão amanhã”. Rugambwa explicou que havia sido enviado a Kanunga por sua mãe para levar um punhado de cinzas, que simbolizavam o corpo de seu pai, no funeral que se realizaria no domingo.
O chanceler de Uganda, Amama Mbabazi, por sua vez, conversou com um adolescente que lhe garantiu que Kibwetere estaria vivo e não entre os corpos carbonizados. O líder teria participado das orações na quinta-feira à noite e deixado o acampamento antes do ritual de imolação. A polícia encontrou em 27 de março uma nova vala comum, desta vez atrás da casa de um dos líderes, o padre excomungado pela Igreja Católica Dominic Kataribabo, com mais 74 (48 adultos e 26 crianças) seguidores da seita.
Com esses, já eram 700 corpos. As investigações concluíram que, na verdade, os seguidores vinham sendo assassinados de forma sistemática havia vários meses, pelos líderes do culto. Os corpos apresentavam marcas de facadas. Muitos tinham ainda cordas ao redor do pescoço, com claras evidências de estrangulamento. Kibwetere, que pregava que quem não obedecesse aos Dez Mandamentos acabaria destruído no Juízo Final, destacou-se nos anos 60 e 70 como integrante do católico Partido Democrático. Mas sua carreira política foi abruptamente encerrada quando seu rival Milton Obote, líder do Congresso Popular de Uganda, o derrotou nas duvidosas eleições gerais de 1980. O então próspero fazendeiro e católico devoto teve de fugir de sua casa no distrito de Ntungamo, sudoeste do país, refugiando-se na cidade de Kabale. Sete anos depois, quando muitas pessoas relatavam visões sobrenaturais nessa região, Kibwetere afirmou ter ouvido e gravado numa fita uma conversa entre Jesus Cristo e a Virgem Maria.
Investigações policiais — O culto foi então formado, no fim dos anos 80, por Kibwetere, dois padres e uma freira que haviam sido excomungados pela Igreja Católica. Sempre vestidos com mantos verde, branco ou preto, os seguidores eram obrigados a viver estritamente sob os Dez Mandamentos e apenas se comunicarem por meio de gestos, exceto quando estavam cantando ou orando. O contato dos fiéis com os moradores locais era mantido apenas comercialmente. Kibwetere ordenava a seus discípulos que vendessem seus pertences e entregassem o dinheiro para a Igreja, que originalmente tinha caráter pacífico, estava registrada como organização não-governamental e mantinha uma escola com 300 alunos. A polícia vinha investigando suas atividades desde 1998 por diversas acusações de abuso e seqüestro de crianças.