As rochas que se formaram na Terra há cerca de 3,8 bilhões de anos, contêm possíveis evidências de processos biológicos. Se a vida pode surgir a partir de matéria inorgânica tão rápida e facilmente, por que ela não é abundante no Sistema Solar e além? Se a biologia é uma propriedade inerente à matéria, por que os químicos até agora foram incapazes de reconstruir a vida, ou qualquer coisa próxima disso, no laboratório? Há aproximadamente quatro bilhões de anos, uma mudança na órbita dos planetas mais distantes do Sol enviou uma tempestade de grandes cometas e asteróides descontrolados no interior do Sistema Solar. Seus violentos impactos geraram grandes crateras ainda visíveis na superfície da Lua e aqueceram a superfície da Terra, transformando-a em rocha derretida e vaporizaram os oceanos em uma névoa incandescente. A origem da vida na Terra é repleta de enigmas e paradoxos. Quem veio primeiro? As proteínas de células vivas ou a informação genética que as compõe? Como o metabolismo de seres vivos pôde começar sem um envoltório membranoso para manter todas as substâncias químicas necessárias juntas? Mas se a vida começou dentro da membrana de uma célula, como os nutrientes necessários entraram nela? As perguntas podem parecer irrelevantes, já que a vida começou, de qualquer jeito. Mas para um grupo de pesquisadores que insiste em descobrir exatamente como tudo começou, a frustração é imensa. Muitas pistas promissoras levaram apenas a anos de trabalho desperdiçado.
Cientistas eminentes como Francis Crick, principal teórico da biologia molecular, sugeriram discretamente que a vida poderia ter se originado em outro lugar antes de ser semeada no planeta, pela dificuldade de se encontrar uma explicação plausível para seu surgimento na Terra. Nos últimos anos, entretanto, quatro avanços surpreendentes renovaram a confiança de que uma explicação terrestre para a origem da vida irá um dia surgir. Um deles é uma série de descobertas sobre estruturas similares a células que poderiam ter se formado naturalmente a partir de substâncias químicas gordurosas que provavelmente existiam na Terra primitiva. Essa pista surgiu a partir de um longo debate entre colegas sobre o que teria surgido primeiro no desenvolvimento da vida: o sistema genético ou a membrana celular. Eles acabaram concordando que a genética e as membranas devem ter se desenvolvido juntas. Os três pesquisadores, Jack W. Szostak, David P. Bartel e P. Luigi Luisi, publicaram um manifesto um tanto aventureiro na revista Nature em 2001, declarando que para produzir uma célula sintética era preciso cultivar e dividir uma protocélula e uma molécula genética em paralelo, com as moléculas sendo encapsuladas na célula. Se as moléculas dessem à célula uma vantagem de sobrevivência em relação a outras células, o resultado seria “um sistema sustentável, de duplicação autônoma, capaz de seguir a evolução de Darwin”, escreveram. “Seria algo verdadeiramente vivo”, acrescentaram.
Um dos autores, Szostak, do Hospital Geral de Massachusetts, desde então, conseguiu executar uma surpreendente porção desse plano. Ácidos graxos simples, que provavelmente existiram na Terra primitiva, formam espontaneamente esferas de camada dupla, muito parecidas com as membranas de duas camadas das células vivas de hoje. Essas protocélulas incorporam novos ácidos graxos à água, e depois se dividem.
Células vivas são geralmente impermeáveis e possuem mecanismos elaborados para permitir apenas a passagem dos nutrientes de que necessitam. Mas Szostak e seus colegas mostraram que pequenas moléculas podem facilmente entrar nas protocélulas. Se elas se combinam a moléculas maiores, no entanto, elas não conseguem sair, formando exatamente o arranjo de que uma célula primitiva precisaria. Se uma protocélula é feita para encapsular um pequeno pedaço de DNA e então é alimentada com nucleotídeos, os elementos fundamentais do DNA, os nucleotídeos irão espontaneamente entrar na célula e se ligar a outra molécula de DNA.
No mês de maio passado, um simpósio sobre evolução no laboratório Cold Spring Harbor, em Long Island, Szostak disse estar otimista em relação às chances de conseguir colocar o sistema químico de duplicação em funcionamento dentro de uma protocélula. Ele então espera integrar um sistema de duplicação de ácidos nucléicos nela em divisão. Os experimentos chegaram perto de criar uma divisão celular espontânea a partir de substâncias químicas que supostamente existiram na Terra primitiva. Mas alguns de seus ingredientes, como os nucleotídeos dos ácidos nucléicos, são bastante complexos. Químicos pré-bióticos, que estudam a química anterior à vida da Terra primitiva, há tempos questionam com perplexidade como os nucleotídeos poderiam ter surgido espontaneamente. Eles são compostos por uma molécula de açúcar, como ribose ou desoxirribose, acoplados a uma base de um lado e um grupo de fosfato do outro. Descobriram com satisfação que bases como adenina facilmente se formam a partir de substâncias químicas simples, como cianureto de hidrogênio. Mas anos de decepção se seguiram quando a adenina se mostrou incapaz de se ligar naturalmente à ribose. Em maio, John Sutherland, químico da Universidade de Manchester, Inglaterra, relatou à Nature sua descoberta de uma rota bastante inesperada para a sintetização de nucleotídeos a partir de substâncias químicas pré-bióticas.
Em vez de fabricar a base e o açúcar separadamente a partir de substâncias químicas que provavelmente existiram na Terra primitiva, Sutherland mostrou que, sob as condições certas, a base e o açúcar poderiam ser produzidos como uma só unidade e, portanto, não precisariam se ligar. “Acredito que o artigo de Sutherland seja o maior avanço dos últimos cinco anos em termos de química pré-biótica”, disse Gerald F. Joyce, um especialista em origem da vida do Instituto de Pesquisa Scripps em La Jolla, Califórnia. Depois que o sistema de autoduplicação se desenvolve a partir das substâncias químicas, esse é o início da história genética, porque cada molécula carrega uma marca de seu ancestral. Crick, que estava interessado na química que precedia a duplicação, uma vez observou, “depois desse momento, o resto é apenas história.”
Joyce tem estudado o possível começo da história por meio do desenvolvimento de moléculas de RNA capazes de se duplicarem. O RNA, um primo próximo do DNA, certamente o precedeu como a molécula genética de células vivas. Além de carregar informações, o RNA também pode atuar como uma enzima para promover reações químicas. Joyce relatou à Science no início deste ano que ha
via desenvolvido duas moléculas de RNA capazes de promover a síntese uma da outra a partir de quatro tipos de nucleotídeos de RNA. “Podemos finalmente ter uma molécula que é imortal”, ele disse, se referindo a uma molécula cuja informação pode ser transmitida indefinidamente. O sistema não está vivo, ele diz, mas desempenha funções centrais da vida como duplicação e adaptação a novas condições. “Gerry Joyce está chegando cada vez mais perto de mostrar que é possível haver autoduplicação de espécies de RNA”, Sutherland disse. “Então apenas um pessimista não admitiria seu sucesso em alguns anos.”
Outro avanço impressionante veio de novos estudos sobre diferenças no uso dos lados direito e esquerdo das moléculas. Algumas substâncias químicas, como os aminoácidos que constituem as proteínas, existem na forma de imagens espelhadas, muito parecidas com as mãos esquerda e direita. Nas condições de ocorrência mais naturais, elas são encontradas em mesclas mais ou menos iguais das duas formas. Mas, em uma célula viva, todos os aminoácidos são canhotos e todos os açúcares e nucleotídeos são destros. Os químicos pré-bióticos há tempos tentam explicar como os primeiros sistemas de vida poderiam ter extraído apenas um tipo de substância química dessas mesclas no início da Terra. Nucleotídeos canhotos são um veneno, porque impedem que os nucleotídeos destros se liguem a uma cadeia para formar ácidos nucléicos, como RNA ou DNA. Joyce se refere ao problema como original syn [pecado original], se referindo aos termos syn e anti, que os químicos usam para as estruturas de forma espelhada.
Mas agora, eles receberam uma inesperada absolvição de seu pecado original. Pesquisadores como Donna Blackmond, do Imperial College London, descobriram que uma mistura de moléculas canhotas e destras foi convertida em apenas uma forma através de ciclos de congelamento e derretimento. Com esses quatro avanços recentes – as protocélulas de Szostak, o RNA que se autoduplica, a síntese natural de nucleotídeos e uma explicação para a diferença no uso dos lados esquerdo e direito das moléculas – os estudiosos da origem da vida possuem muitos motivos para se alegrarem, apesar do longo caminho ainda a ser percorrido. “Em algum momento, essas linhas vão começar a se unir”, Sutherland disse. “Acredito que todos nós estamos mais otimistas agora do que há cinco ou dez anos.” Uma medida das dificuldades que estão por vir, no entanto, é que até agora, há pouco consenso sobre o tipo de ambiente no qual a vida teria se originado. Alguns químicos, como Guenther Waechtershaeuser, defendem que a vida começou em condições vulcânicas, como a de fendas nas profundezas do mar. Esses locais possuem gases e catalisadores metálicos nos quais ele argumenta que os primeiros processos metabólicos provavelmente surgiram.
Todavia, muitos biólogos acreditam que os constituintes necessários da vida estariam sempre diluídos demais nos oceanos. Eles defendem, como Darwin, que a origem da vida ocorreu em um lago aquecido de água doce, onde os ciclos de encharque e evaporação nas margens poderiam produzir concentrações e processos químicos úteis. Ninguém sabe ao certo quando a vida começou. A evidência mais antiga, e em geral aceita, de células vivas são fósseis de bactéria com 1,9 bilhão de anos da formação Gunflint em Ontário. Mas rochas de dois locais na Groenlândia, contendo uma mistura incomum de isótopos de carbono que poderiam ser uma evidência de processos biológicos, têm 3,83 bilhões de anos. Como a vida poderia ter começado tão rapidamente, considerando que a superfície da Terra provavelmente estava esterilizada pelo último bombardeio intenso ? a chuva de cometas e asteróides gigantes que caiu sobre a Terra e a lua há cerca de 3,9 bilhões de anos? Stephen Mojzsis, geólogo da Universidade do Colorado que analisou um dos locais na Groenlândia, afirmou na Nature que esse bombardeio intenso não teria matado tudo, como geralmente se acredita. Segundo ele, a vida teria começado muito antes e sobrevivido ao bombardeio em ambientes nas profundezas do mar.
Evidências recentes de rochas extremamente antigas, conhecidas como zircônio, sugere que oceanos estáveis e a crosta continental surgiram há cerca de 4,40 bilhões de anos, apenas 150 milhões de anos após a formação da Terra. Por isso, a vida poderia ter começado meio bilhão de anos antes do bombardeio cataclísmico. Os geólogos, no entanto, discutem que se as rochas da Groenlândia realmente oferecem sinais de processos biológicos e geoquímicos, freqüentemente modificam suas estimativas da composição da atmosfera primitiva. Leslie Orgel, pioneiro em química pré-biótica, costumava dizer, “apenas espere alguns anos e as condições na Terra primitiva vão mudar novamente”, disse Joyce, um ex-aluno de Orgel. Químicos e biólogos estão, portanto, praticamente sozinhos na busca para descobrir como a vida começou. Por falta de evidência em fósseis, eles não possuem nenhum guia sobre quando, onde, ou como as primeiras formas de vida surgiram. Por isso, eles só descobrirão a vida reinventando-a no laboratório.
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