Procuramos por vida alienígena, mas sob a nossa imagem e semelhança…
\”Os cientistas, portanto, estão acostumados a lidar com a dúvida e a incerteza. Todo conhecimento científico é incerto. Essa experiência com a dúvida e a incerteza é importante. Eu acredito que ela é de grande valor e se estende além das ciências. Eu acredito que para se resolver qualquer problema nunca resolvido antes, você tem que deixar a porta para o desconhecido entreaberta.\” — Richard Feynman em The Meaning of It All (1998, p. 27)
Em uma recente discussão na universidade, uma estudante de graduação em biologia e pesquisadora em astrobiologia, perguntou:
\”Ao contrário das estrelas, que ainda nascem o tempo todo, as galáxias estão todas na primeira e única geração e com a mesma idade. Embora tenham colidido, fundido, fragmentando-se e se metamorfoseado em novas formas e cores, nenhuma nova galáxia nasceu desde que o cosmos era bebê. Nesse sentido (…) podemos extrapolar o darwinismo universal [e, conseqüentemente a idéia de seleção natural] à formação de estrelas e galáxias?\”
Desde a publicação do On the Origin of Species by Means of Natural Selection por Charles Darwin, em 1859, uma série de autores têm tentado aplicar aspectos da teoria da evolução para explicar outros fenômenos naturais e sociais fora do espectro biológico propriamente dito. De estrelas e galáxias, passando pela economia, sociologia, antropologia e pela física das partículas elementares, é muito fácil encontrar os termos darwinismo e evolução fora de periódicos e livros dedicados às ciências biológicas.
Seria isso uma evidência inquestionável do darwinismo universal, nos termos discutidos pelo biológico evolucionista Richard Dawkins em 1983? Considerada a questão de relance, essa poderia mesmo ser uma demonstração clara da pujança e do alto poder explanatório da teoria evolutiva. No entanto, ao analisarmos sob a lupa, fica claro o abuso intrínseco a essas extrapolações.
A idéia de darwinismo universal não tem nada a ver com a \’evolução\’ de galáxias ou estrelas. A universalidade, no caso, não significa que se pode aplicar o darwinismo para compreender qualquer processo ou sistema que mude com o tempo. Ele, na verdade, é uma resposta à conjectura \”Se existe vida em outros lugares do universo, esses organismos evoluem como evoluem os seres vivos da Terra?\”. Para se falar em evolução, no sentido biológico (que é aquele discutido por Darwin e Dawkins), é necessário considerar a existência de reprodução e metabolismo.
O que Dawkins e outros autores defendem é que, se existe vida em qualquer lugar do universo, esses organismos sofrem pressões seletivas, devendo haver mudanças na sua constituição genética (independentemente de ser DNA, RNA, PNA ou qualquer outra molécula que carregue informação de uma geração para outra). Tais variações pré-existentes são fundamentais para a possibilidade de reprodução diferencial, isto é, seleção natural.
Segundo o filósofo Carl Emmeche (apud Darling, 2001, p. 10):
\”É altamente concebível que toda a vida no universo evolui por um tipo de seleção darwiniana de interatores, cujas propriedades são em parte especificadas por um estoque de informações que pode ser replicado… A própria noção de seleção natural e replicação… parece ser específica para entidades biológicas… Essa definição é simples, elegante, geral, e cristaliza nossas idéias de um mecanismo geral da criação de sistemas vivos em uma perspectiva evolutiva.\”
Qual o mecanismo de informação de uma estrela? Ela tem DNA, RNA, PNA…? Estrelas só \”evoluem\” no sentido de mudança, não no sentido biológico. Utilizar o raciocínio evolutivo a qualquer coisa equivale, em termos de confiabilidade e relevância científica, a aplicar física quântica para explicar o comportamento humano, como celebrizado no filme Quem somos nós [What the bleep do we know], de 2004, ou nas montanhas de bobagens esotéricas dos últimos anos que pretensamente utilizam conceitos de hard science, mas que, de fato, extrapolam os resultados de pesquisas científicas muito além do contexto no qual haviam sido postulados inicialmente – para uma leitura instigante sobre abusos das ciências enfatizando a filosofia pós-moderna, leia Imposturas Intelectuais, de Alan Sokal e Jean Bricmont (2010).
Para Dawkins (1983):
\”A perspectiva universal me leva a ressaltar a distinção entre o que pode ser chamado ‘seleção uma única vez’ [tradução livre para one-off selection] e ‘seleção cumulativa’. A ordem no mundo não-vivo pode resultar de processos descritos como um tipo rudimentar de seleção. Os seixos à beira-mar são organizados pelas ondas, de forma que os grandes seixos acabam se dispondo em camadas separadas dos menores. Podemos considerar isso um exemplo de seleção de uma configuração estável a partir de uma maior desordem aleatória inicial.
O mesmo pode ser dito dos padrões orbitais ‘harmoniosos’ dos planetas ao redor das estrelas, dos elétrons em torno dos núcleos, dos formatos dos cristais, bolhas, das gotículas e até mesmo da dimensionalidade do universo em que nos encontramos (…) Mas isso é ‘seleção uma única vez’. Ela não dá origem à evolução contínua porque não há replicação nem sucessão de gerações. Adaptação complexa requer muitas gerações de seleção cumulativa, sendo a mudança de cada geração construída a partir do que havia antes. Na ‘seleção uma única vez’, um estado estável se desenvolve e é mantido. Ele não se multiplica ou gera prole.
Na vida, a seleção que acontece em uma geração é ‘seleção uma única vez’ análoga à organização dos seixos na praia. A característica peculiar da vida é que gerações sucessivas de tal seleção desenvolvem, progressiva e cumulativamente, estruturas que são eventualmente complexas o suficiente para criar a forte ilusão de design. ‘Seleção uma única vez’ é um lugar comum da física, e não pode originar complexidade adaptativa. Seleção cumulativa é a marca registrada da biologia e é, eu acredito, a força subjacente a toda complexidade adaptativa.\”
No mesmo artigo, Dawkins pondera sobre o fator limitante para a vida no universo. Na opinião dele, \”se uma forma de vida apresenta complexidade adaptativa, ela deve possuir um mecanismo evolutivo capaz de gerar complexidade adaptativa. Independentemente de quais sejam esses mecanismos evolutivos, se alguma generalização puder ser feita sobre a vida no universo, eu aposto que ela sempre será reconhecida como vida darwiniana\”.
\”Biosfera sombria\”
Muitos podem discordar da visão de Dawkins. Sim, certamente a vida em outros planetas pode ser muito distinta do que concebemos hoje em dia. Nas palavras do físico e astrônomo David Darling (2001, p. 12), \”a vida em outros lugares pode ser tão estranha que, se basearmos nossas expectativas muito rigidamente em padrões terrestres, nós talvez tenhamos problemas em reconhecê-la\”. No entanto, ele continua (p.13, o grifo é dele), \”A abordagem adotada pela comunidade científica é simples, direta e prática: procurar pelo tipo de vida que conhecemos, com possíveis adaptações para diferentes ambientes\”.
Ou seja: se podemos identificar vida em outros planetas, ela deve estar dentro dos limites que definimos como vida, certo? Se sim, podemos dizer que, dada a existência de vida alienígena (uma vez que fomos capazes de identificar um organismo extraterrestre como tal), ela evolui da mesma forma que algo na Terra. Isso não significa, porém, que coisas completamente diferentes do que consideramos a priori não possam existir. Mas, se existirem, como conseguiremos dizer que são vivos, se não se encaixam na nossa definição pré-estabelecida?
No geral, o que fazemos é extrapolar nossa biologia para o universo. Mesmo que outras biologias existam, por mais que estejam debaixo dos nossos narizes, provavelmente não temos (ainda) a competência para identificá-las. A não ser, obviamente, que estendamos nossos conceitos, para que sejamos capazes de desvendar formas alternativas de vida (alienígenas), talvez presentes mesmo no nosso planeta, na chamada \”biosfera sombria\”.
A busca por uma conexão íntima entre a origem da vida na Terra e o cosmos pode ser o início de uma \”teoria geral da biologia, uma estrutura de conceitos que sustentaria o desenvolvimento da vida onde quer que ela exista\” (Darling, 2001, p. xiii). Essa conexão cósmica \”não apenas ajudaria a explicar alguns dos problemas mais agudos da nossa Biologia e a extrema velocidade com que a vida se disseminou aqui. Ela também sugeriria que outras formas de vida no universo poderiam compartilhar muito da mesma base química\” (Darling, 2001, p. 50).
A vida, o universo e tudo mais
É claro que não podemos ser arrogantes a ponto de considerar que chegaremos de fato a responder quais são as condições para a vida em todo o universo. Ainda desconhecemos muito do nosso próprio planeta! Astrobiologia é sobre saber se podemos extrapolar as condições que reconhecemos como essenciais para a existência de vida para o restante do universo. Precisamos aceitar a limitação de que só podemos identificar o que podemos identificar… A astrobiologia não vai ser capaz de dizer, de forma peremptória, como aparece a vida em qualquer parte do cosmos. Vai apenas criar possibilidades, metodologias e técnicas para saber se, fora da Terra, existem formas de vida como dentro da Terra (ou pelos como concebíveis pela nossa espécie).
Mesmo a tentativa de extrapolar a nossa biologia para o resto do universo é extraordinariamente válida e interessante. É uma questão crucial e com implicações sociais e filosóficas gigantescas. Mas temos que ter a dimensão exata da nossa ignorância e da nossa condição diminuta frente ao cosmos. É o que o físico prêmio Nobel Richard Feynman dizia. \”A imaginação da natureza é muito, muito maior que a imaginação do homem. Todos que não tiverem ao menos uma idéia vaga dessa observação não poderem nem imaginar quão maravilhosa a natureza é\” (Feynman, 1998, p. 10).
Essa não é uma \”visão utilitarista\” da ciência, como alguns podem pensar. Penso na ciência como um conjunto de ferramentas e visões de mundo que desenvolvemos para compreender a vida, o universo e tudo mais. Penso, no entanto, que é dever dos cientistas conhecer suas limitações e o escopo do seu trabalho, por mais amplo que seja, sempre buscando extrapolar sua perspectiva circunscrita para fazer avançar o conhecimento. Ainda nas palavras de Feynman (1998, p. 24), \”(…) as extrapolações são as únicas coisas que tem algum valor [científico] real\”.
Partir do pressuposto que vamos conseguir todas as respostas e que já temos condições de chegar a elas me parece uma grande presunção (esse foi o erro da Física do final do século XIX, pouco antes do aparecimento da teoria da relatividade e da física quântica).
Para o paleontólogo e evolucionista Stephen Jay Gould (1987, p. 19):
\”É importante que nós, cientistas atuantes, combatamos esses mitos da nossa profissão que a colocam como algo superior e à parte. (…) a longo prazo, a ciência só poderá vir a ser prejudicada por sua autoproclamada distinção como um sacerdócio capaz de preservar um rito sagrado conhecido como o método científico. A ciência é acessível a todos os seres pensantes porque aplica os instrumentos universais do intelecto aquilo que é o seu material distintivo. Entender a ciência – e nem seria preciso repetir a litania – torna-se cada vez mais crucial num mundo de biotecnologia, computadores e bombas.\”
Conviver com as incertezas, nunca perder o \”senso de maravilhamento\” perante o universo e observar (mas nem tanto) o rigor da formalização são premissas da ciência válidas para qualquer um que queira compreender a natureza e suas idiossincrasias.