Enquanto desmatava o terreno de sua família há algumas décadas perto de Rio Branco (AC), no extremo oeste da Amazônia brasileira, Edmar Araújo percebeu uma série de linhas cavadas profundamente no solo. “Essas linhas eram perfeitas demais para não terem sido feitas pelo homem”, disse Araújo, um criador de gado de 62 anos de idade. “A única explicação que eu imaginei foi que eram trincheiras para a guerra contra os bolivianos”.
Mas não eram trincheiras, pelo menos não para nenhum conflito que aconteceu aqui no início do século 20. De acordo com surpreendentes descobertas arqueológicas feitas pela região nos últimos anos, as linhas cavadas no terreno de Araújo e outras centenas delas nas imediações, são muito, muito mais antigas – refutando potencialmente o que se sabia até agora sobre a maior floresta tropical do mundo.
O desmatamento que vem devastando a Amazônia desde os anos 70 também expôs um segredo há muito escondido sob a densa floresta tropical: formas geométricas desenhadas com perfeição que se estendem por centenas de quilômetros de diâmetro.
Alceu Ranzi, um acadêmico brasileiro que ajudou a descobrir os quadrados, octógonos, círculos, retângulos e ovais entalhados no chão, disse que os geoglifos encontrados na terra desmatada são tão significativos quanto as famosas linhas de Nazca, os símbolos enigmáticos de animais que podem ser vistos de avião no sul do Peru. “O que mais me impressionou em relação a esses geoglifos foi sua precisão geométrica, e como eles emergiram de uma floresta que todos nós aprendemos que era intocada exceto por algumas tribos nômades”, disse Ranzi, paleontologista que primeiro viu os geoglifos nos anos 70 e que, anos mais tarde, examinou-os a bordo de um avião.
Para alguns acadêmicos da história humana na Amazônia, os geoglifos do Estado brasileiro do Acre e outros sítios arqueológicos sugerem que as florestas do oeste da Amazônia, antes consideradas inabitáveis para sociedades sofisticadas, em parte por causa da qualidade de seus solos, podem não ter sido tão parecidas ao Éden como defendem alguns ambientalistas.
“Em vez de florestas prístinas, pouco habitadas por seres humanos, partes da Amazônia podem ter abrigado durante séculos grandes populações que chegavam a milhares de pessoas e que viviam em dezenas de cidades conectadas por redes de estradas”, explica o escritor norte-americano Charles C. Mann. De fato, de acordo com Mann, o explorador britânico Percy Fawcett desapareceu em 1925 durante uma busca pela “Cidade Perdida de Z” no Xingu, uma área com esse tipo de assentamento urbano.
Além de afirmar que partes da Amazônia eram “muito mais densamente povoadas do que se pensava”, Mann, o autor de 1491 [Knopf, 2005], um livro inovador sobre os americanos antes da chegada de Colombo, disse: “Essas pessoas modificaram intencionalmente seu ambiente de forma duradoura”. Como resultado desses trechos extensos de povoamento humano, as colossais florestas da América do Sul podem ter sido bem menores em alguns momentos, com áreas grandes lembrando savanas relativamente vazias.
Essas revelações não se encaixam confortavelmente no debate politicamente carregado sobre destruir partes da floresta, no qual alguns dos ambientalistas são contra permitir que qualquer tipo de atividade agropecuária em larga escala, como a pecuária e o cultivo de soja, avance mais para dentro da Amazônia. Os cientistas hoje dizem que também se opõem à queima de estoque das floretas, mesmo que as pesquisas sugiram que a Amazônia tenha sustentado uma agricultura intensiva no passado. De fato, eles dizem que outras terras nos trópicos, principalmente na África, poderiam se beneficiar potencialmente de estratégias que já foram usadas na Amazônia para superar restrições do solo.
“Se alguém quiser recriar a Amazônia pré-colombiana, a maior parte das florestas precisaria ser removida e substituída por muitas pessoas e uma paisagem gerenciada de alta produtividade”, disse William Woods, um geógrafo da Universidade de Kansas que faz parte de uma equipe que estuda os geoglifos do Acre.
“Eu sei que isso não soará bem para os ambientalistas ardorosos”, disse Woods, “mas o que mais se pode dizer?”.
Enquanto os pesquisadores juntam as peças da história ecológica da Amazônia, o mistério ainda encobre as origens dos geoglifos e as pessoas que os fizeram. Até agora, 290 sulcos como estes foram encontrados no Acre, junto com cerca de 70 outros na Bolívia e 30 nos estados brasileiros do Amazonas e Rondônia. Os pesquisadores os viram pela primeira vez nos anos 70, depois que a ditadura militar do Brasil encorajou as pessoas a se mudarem para o Acre e outras partes da Amazônia, usando o slogan nacionalista “ocupar para não entregar” para justificar o assentamento que resultou em desmatamento.
Mas pouca atenção científica foi dada à descoberta até que Ranzi, o cientista brasileiro, começou suas pesquisas no final dos anos 90, e pesquisadores brasileiros, finlandeses e norte-americanos começaram a encontrar mais figuras usando imagens de satélite de alta resolução e pequenos aviões para voar sobre a Amazônia. Denise Schaan, uma arqueóloga da Universidade Federal do Pará no Brasil que agora lidera o estudo, disse que o teste de radiocarbono indicou que eles foram feitos entre 1.000 e 2.000 anos atrás, e podem ter sido reconstruídos várias vezes durante aquele período.
Inicialmente, disse Schaan, “os pesquisadores, depois de avaliar os seis metros de profundidade de algumas das trincheiras, acharam que elas eram usadas para a defesa contra ataques. Mas a falta de sinais de assentamento humano dentro e em torno delas, como vestígios de moradia e pilhas de lixo, bem como modificações
do solo para a agricultura, derrubaram essa teoria”.
Estudiosos agora acreditam que podem ter tido importância cerimonial, semelhante, talvez, às catedrais medievais na Europa. Esse papel espiritual, disse William Balee, antropólogo da Universidade de Tulane, “poderia estar relacionado à geometria e ao gigantismo”. Ainda assim, os geoglifos, localizados no cruzamento entre as culturas andina e amazônica, continuam sendo um enigma. Eles ficam distantes dos assentamentos pré-colombianos descobertos em outras partes da Amazônia. Ainda existem grandes lacunas no que se sabe sobre os povos indígenas desta região, depois que milhares foram escravizados, mortos ou obrigados a deixar suas terras durante a expansão da borracha que começou no final do século 19.
Para os cientistas e pesquisadores do Brasil, disse Schaan, “as linhas são uma das descobertas mais importantes de nossa época”. Mas o repovoamento desta parte da Amazônia ameaça a sobrevivência dos geoglifos, depois de ficarem escondidos por séculos. A floresta ainda cobre a maior parte do Acre, mas nas áreas desmatadas onde foram encontrados, estradas de terra já atravessam alguns deles. Pessoas vivem em barracos de madeira dentro de outros. Os geoglifos estão repletos de postes de eletricidade. Alguns donos de terras usam as trincheiras como depósitos de água para o gado.
“É uma desgraça que nosso patrimônio seja ameaçado dessa forma”, disse Tiago Jurua, autor de um novo livro sobre a proteção de sítios arqueológicos, inclusive dos geoglifos. Jurua, um biólogo, e outros pesquisadores disseram que os geoglifos encontrados até agora são provavelmente apenas uma amostra do que as florestas do Acre guardam sob suas copas. Afinal, eles alegam que fora das cidades modernas, hoje há menos pessoas na Amazônia do que havia antes da chegada dos europeus há cinco séculos.
“Esta é uma nova fronteira para a exploração e a ciência”, disse Jurua. “O desafio agora é fazer mais descobertas nas florestas que ainda estão de pé, com a esperança de que elas não sejam derrubadas em breve”.
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