Os componentes e as dimensões ficcionais dos relatos ufológicos sempre foram dirimidos e obliterados pelos ufólogos e pesquisadores aferrados à crença nos discos voadores. Comprometidos emocional e ideologicamente em provarem de qualquer maneira e a qualquer custo a existência de visitantes extraterrestres, são refratários à análise das categorias que os colocam em xeque. A emoção e a ideologia, sobretudo quando são de origem coletiva, desafiam o exame crítico e a dúvida. Experiências ou teorias que as contrariem são automaticamente rechaçadas ou desconsideradas. A pressão exercida pelos demais pesquisadores não permite que eles julguem com isenção e liberdade as noções que o próprio grupo sedimentou.
O pesquisador norte-americano Martin S. Kottmeyer, expert nos aspectos psicossociais dos UFOs, é um dos que melhor estabeleceram a inter-relação entre os temores e paranoias da Guerra Fria e da Era Nuclear, os filmes de ficção científica, as crenças e os mitos contemporâneos e as aparições de discos voadores. Assinala o que chama de “aspectos dramatúrgicos” das experiências ufológicas, especialmente aqueles em torno das “máquinas manipuladoras”. Seus artigos, publicados em revistas como Magonia, The Anomalist, Archeus, The Real News, The Mufon UFO Journal, UFO Brigantia e The Wild Places, são os mais citados por estudiosos e divulgadores interessados em aprofundar os aspectos sociológicos do Fenômeno UFO — e os mais encarniçadamente atacados pelos partidários da hipótese extraterrestre. De acordo com Kottmeyer, os ufólogos sistematicamente cortam dos relatórios as fontes culturais provenientes da ficção não porque estejam tentando deliberadamente enganar o público, e sim por causa de sua parcialidade inconsciente como militantes pró-UFOs. Kottmeyer se incumbiu de traçar paralelos entre os casos ufológicos e cenas de filmes e seriados de televisão.
Ao assistir um antigo episódio do seriado Outer Limits [Limites Externos], intitulado The Bellero Shield, convenceu-se de ter encontrado a solução cinematográfica para as lembranças de Barney Hill. No episódio aparece um extraterrestre com “olhos que viam tudo ao mesmo tempo”. Barney descreveu seus abdutores como sendo dotados de olhos que viam tudo ao mesmo tempo. Porém, verificou-se que a fita só fora exibida em 1964, três anos depois do caso Hill. Qualquer tentativa de ligação parecia descabida. Contudo, Kottmeyer se deu conta de um detalhe que fecharia o círculo, conforme explanou no ensaio Encontros Desajeitados: Filmes Ruins e o Mito dos UFOs [Gauche Encounters: Badfilms and the UFO Mythos]: “Barney Hill não disse nem desenhou nada sobre ‘olhos envolventes’ até ser hipnotizado, em 22 de fevereiro de 1964. O episódio The Bellero Shield foi ao ar em 10 de fevereiro. Como se essa prova não bastasse, fiquei sabendo que Barney disse: ‘Os olhos estão falando comigo’. No episódio, o alienígena Bifrost explicitamente afirma que fala com os olhos”.
Invasão de homens do espaço
Criações transculturais bombardeadas continuamente por meio da televisão, acarretaram modificações substanciais em nossos modos de pensar cotidianos: “As abduções por ocupantes dos UFOs só se tornaram populares depois de uma década de filmes sobre invasão de homens do espaço. Há um visível empréstimo de convenções, incluindo névoas, roupas de metal de uma única peça, macrocefalia, mundos moribundos e controle da mente”. Para Keith Thompson, certos temas do relato de Betty assemelham-se aos do filme Invasão de Marte, de William Cameron Menzies, rodado em 1954. Betty foi deitada sobre uma mesa de operações onde espetaram agulhas em sua nuca e em seu abdômen. No filme, uma mulher abduzida é posta sobre uma mesa de operações e um aparelho é implantado em sua nuca com o auxílio de uma agulha. Em uma das cenas anteriores, passada em um observatório, o doutor Kelston mostra aos protagonistas um grande mapa estelar enquanto discutem acerca da proximidade Marte-Terra. Quando ele aponta para o mapa, o espectador desatento não nota se a Terra aparece ou não. O alienígena perguntou a Betty se ela sabia apontar onde ficava a Terra no mapa. Não sabia. Ela não sabia porque seguia inconscientemente o tema da Terra ausente do roteiro do filme.
Kottmeyer menciona a atitude de um conceituado pesquisador de abduções que encontrou uma referência a um disco movido a cristais de dilítium [O combustível da Enterprise]. Reconhecendo Jornada nas Estrelas como a fonte da imagem, o ufólogo simplesmente retirou essa parte do relatório de uma abdução por extraterrestres. “As únicas influências capazes de passar por esse escrutínio são as misteriosas e ambíguas. Somente quando as influências vêm de fontes esotéricas ou esquecidas, o material cultural passa para a literatura UFO. Desse modo, o fã de filmes B — de segunda categoria — leva vantagem quando se trata de reconhecer as fontes de certos detalhes das experiências com UFOs”, afirmou Kottmeyer.
Lancinante pela agudeza de sua linha de abordagem, o sociólogo francês Bertrand Meheust se debruçou sobre a literatura de ficção científica do período anterior à Primeira Guerra Mundial e descobriu que dezenas de obras versavam sobre objetos aéreos estranhos que faziam parar motores de automóveis — eles perseguiam trens e carros, que atingiam pessoas com raios estranhos e as levavam para o interior de estruturas esféricas. A abdução por alienígenas era o tema central de muitas histórias, a maioria em francês ou inglês, publicadas entre 1880 e 1940.
Algumas novelas de Júlio Verne, como Robur, O Conquistador, publicadas nos primórdios da aeronáutica, tornaram-se uns ingredientes a mais — bastante substanciais, diga-se de passagem — no caldo de cultivo que precedeu a onda visionária que é parenta próxima da saga dos modernos discos voadores. Trata-se da pitoresca escalada de notícias sobre “naves aéreas”, esses misteriosos dirigíveis que apareceram nos Estados Unidos no final do século XIX, entre 1896 e 1897, configurando um fenômeno que se comportou do mesmo modo que os contemporâneos UFOs. Todavia, distantes da era espacial, era natural que as naves ostentassem arabescos rococós, emitissem sons parecidos com os de uma máquina a vapor e se adiantassem pouco tecnicament
e em relação aos conhecimentos da época. E como pensar em extraterrestres não estava na ordem do dia, os insólitos veículos foram atribuídos a inventores malucos.
Supercivilizações
Na década de 20, as naves em forma de disco já eram lugar comum. Ilustradores pioneiros como Frank Paul e Geo Fox, das revistas Wonder e Amazing, desafiavam os leitores a inventar histórias que incluíam os inconfundíveis discos em épocas tão prematuras como 1931. A partir de 1930 as tiras de Buck Rogers eram riscadas por astronaves discoides e o mesmo ocorria nas de Flash Gordon, em 1934. O nexo entre discos voadores e a ideia de que somos visitados por seres extraterrestres estabeleceu-se com as primeiras histórias de ficção científica em que supercivilizações tecnológicas descobrem e perscrutam a Terra, traçam planos de invasão e conquista ou cumprem pacíficas missões de vigilância e observação. Sobre isso, asseverou Meheust:
“Convém lembrar que os discos voadores não somente utilizam uma técnica física superior a nossa, como também possuem um caráter estranho e psíquico: tudo se passa não apenas como se os animadores dessas máquinas pudessem aparecer e desaparecer à vontade, afetar nossos corpos, deixar marcas na terra, mas ainda como se conhecessem nossas reações psíquicas e incessantemente anulassem nossos esforços para conhecê-los. Esse é o lado lúdico do fenômeno que, no momento, parece-nos mais desconcertante e que induz muitos ufólogos a acharem que os discos são animados por seres vivos pensantes, vindos de um ponto incomensuravelmente distante do cosmos.
Tal hipótese é absolutamente inadmissível, já que supõe uma ciência da qual não temos a menor ideia. Sob esse ponto de vista, parece mística e fictícia. Entretanto, tem a vantagem de explicar momentaneamente as ‘visitas’ que estariam fazendo à Terra, particularmente as aparições de humanoides, anunciadas por testemunhas dignas de fé. A principal vantagem da minha assertiva é a de relegar à pura ficção as proposições de tipo físico e renunciar a qualquer hipótese de visitas de extraterrestres ao nosso planeta, pois explica o Fenômeno UFO como sendo a reprodução alucinatória das narrações de ficção científica”.
Os discos voadores não somente utilizam uma técnica física superior à nossa, como também possuem um caráter estranho e psíquico: tudo se passa não apenas como se os animadores dessas máquinas pudessem aparecer e desaparecer à vontade
Instigado com a inata propensão das testemunhas em pinçarem elementos da ficção e as incorporarem aos relatos, o psicólogo social argentino Roberto Enrique Banchs [Consultor da Revista UFO] empreendeu um estudo rigoroso e categórico dos efeitos na população de filmes nitidamente sugestionáveis. Mediante gráficos e quadros estatísticos, demonstrou cabalmente que as ondas de UFOs irrompiam, incrementavam-se e decresciam muitas vezes acompanhando a época de lançamento, exibição e saída de cartaz. “É notório observar que sua projeção coincide com os meses de maior incidência de informes, os quais se reduzem sensivelmente quando o filme deixa de ocupar as telas das salas cinematográficas”, escreveu ele em seu livro Fenómenos Aéreos Inusuales: Un Enfoque Biopsicosocial, Editorial Leuka, 1994]. O comentário se refere a Contatos Imediatos do Terceiro Grau, de Steven Spielberg, exibido na Argentina em 1978 — ano em que esse país se viu às voltas com uma gigantesca onda de discos voadores.
Estado de emoção latente
Banchs afirmou que “a relação de causalidade estabelecida entre ambos — filmes-onda — não pode passar despercebida no momento de analisar o papel desempenhado pelo gênero ficção científica na atividade ufológica. Assim sendo, o presente estudo confirma a hipótese de que o fenômeno não se manifesta em ciclos ou ondas devido a sua natureza intrínseca, e sim a fatores alheios, denotando um estado de emoção latente que aguarda não mais do que uma oportunidade para manifestar-se”. Não obstante, cabe frisar que nenhum desses estudiosos chega ao cúmulo de atribuir à literatura e aos filmes de ficção a responsabilidade integral pela criação e disseminação de um fenômeno que, sob diferentes roupagens, transcende épocas e culturas, resistindo sistematicamente a qualquer tipo de explicação definitiva.
Graças ao astrofísico francês Jacques Vallée, ganhou relevância a ideia de que os relatos modernos de encontros com UFOs são uma sequência dos relatos de encontros de seres humanos com seres extraordinários através da história. O reaparecimento de uma corrente profunda da cultura humana conhecida desde os tempos antigos por vários nomes configura um movimento contínuo que, por meio de experiências místicas e crenças religiosas, conduz diretamente da magia primitiva aos modernos discos voadores e até à prática da magia negra. “Os mecanismos que ensejaram essas várias crenças são idênticas”, argumentou Vallée. A aparência tecnológica não passaria de uma formalidade, uma espécie de fachada para uma interação mais ampla e disfarçada da humanidade com uma fonte progenitora, fonte essa que há séculos se empenharia em moldar lenta, imperceptível e subliminarmente o imaginário humano por meio da projeção de eventos-imagem com coerência suficiente para serem notados, mas complexos a ponto de não serem compreendidos em sua totalidade. Os fenômenos superficiais nesses campos variam em função do ambiente cultural e do contexto histórico no qual se projetam.
Em seu revolucionário livro Passaporte para Magonia [Plaza & Janes, 1975], Vallée se opõe às idealidades da representação e vai muito além do quadro específico de referência que envolve os UFOs explorando os mecanismos geradores de visões religiosas, êxtases místicos, aparecimentos de criaturas sobrenaturais e discos voadores, todos apoiados nos mesmos processos e estruturas e causadores dos mesmos efeitos nos observadores humanos. Na acepção de Vallée, os UFOs funcionariam como uma espécie de “transformador da realidade”, um metassistema parecido com o da indústria cinematográ
fica pronto para gerar qualquer imagem apropriada ao patamar de uma dada época ou cultura, em uma dada condição de mercado. A casuística, de fato, jamais trouxe nada de novo, não passando de bricolagem [Rearranjos de elementos preexistentes na mitologia, no folclore, em contos de fada, na literatura, em filmes de ficção científica etc]. A Ufologia constituiria, portanto, uma “religião dos elementos”, de cunho fetichista.
Indo muito além
De longe a mais revolucionária, inovadora e cultuada série de ficção científica da história, Jornada nas Estrelas já foi abordada, analisada e sondada de quase todos os ângulos e pontos de vista possíveis e imagináveis desde que, de fenômeno televisivo global, converteu-se, tal qual os UFOs, em um poderoso mito da era tecnológica, ultrapassando os limites da sala de recreação e da zona neutra do entretenimento para atingir a fronteira final da alma humana. Assimilada tanto pela cultura de massas como pela acadêmica — ao menos aquela que não se rendeu ao cinismo descarado e ao pragmatismo empertigado e fastidioso —, não há como desconsiderar o impacto de seus conceitos, filosofias, imagens e ideários na mentalidade coletiva da segunda metade do século XX e do início do XXI.
Acenando com a possibilidade de aperfeiçoamento da consciência e tocando em questões cruciais, atinentes aos nossos próprios dilemas e conflitos morais e existenciais, a fase clássica em especial, quebrou tabus, contestou o establishment, renovou costumes, instaurou a ética do respeito ao outro e difundiu a ideia de infinita diversidade e infinita combinação, qual seja, a de coexistência pacífica e harmônica entre variados povos e espécies, encarados como detentores dos mesmos direitos e prerrogativas de liberdade e autodeterminação. Tais preceitos e diretrizes continuaram a ser seguidos em A Nova Geração, A Nova Missão, Voyager e Enterprise. Os dez longas-metragens para o cinema igualmente projetaram os avanços técnicos, políticos e sociais hodiernos em seu melhor desenvolvimento hipotético, criando um futuro utópico e esperançoso em que todos nós gostaríamos de viver, sem fome, racismo, miséria e ignorância, voltado ao aprimoramento pessoal e a aquisição de conhecimentos.
A crença na ciência e na evolução continuada também é uma característica de grande parte dos ufólogos. Pensando nisso e levando em conta que muitos deles se tornaram admiradores da série e vice-versa, resolvi, na condição de ambos, aventurar-me a avaliar até que ponto seus elementos, tanto quanto os de outros filmes de ficção científica, foram transpostos das telas para o cenário ufológico. Pretendo assim estar prestando uma singela homenagem a esse universo que me fascina e me instiga desde criança.
Federação de Planetas
O texano Gene Roddenberry concebeu Jornada nas Estrelas em 1963 tomando por base a saga da conquista do Oeste Americano, os discursos inflamados do presidente John Fitzgerald Kennedy conclamando esforços para colocar o homem na Lua até o final daquela década, e claramente inspirado no filme O Planeta Proibido, dirigido por Fred McLeod Wilcox, em 1956. Nele já havia uma Federação de Planetas, a possibilidade de viajar no hiperespaço a velocidades superiores a da luz, uma nave em forma de disco e monstros do subconsciente.
Em 1964, Roddenberry escreveu e produziu The Cage [A Jaula], episódio piloto em que a USS Enterprise se vê às voltas com as ilusões materializadas pelos anões macrocéfalos do planeta Talos IV. No episódio, a nave é capitaneada por Christopher Pike [Jeffrey Hunter] e tendo na ponte de comando uma mulher no posto de imediato [Majel Barret, que se tornaria esposa de Gene] e um cientista de orelhas pontudas, o senhor Spock [Leonard Nimoy] — aquele célebre “mestiço interespacial” de orelha pontiaguda, nascido de mãe terrena com um ser do planeta Vulcano. Taxado de cerebral demais para os padrões do telespectador norte-americano, o projeto acabou engavetado. Posteriormente, A Jaula foi reeditado e inserido no episódio duplo The Menagerie [A Coleção].
Um dia o homem será capaz de controlar energias incríveis. E quem sabe até o átomo. Energias que poderão nos levar a outros mundos em naves espaciais. E os que forem ao espaço serão capazes de alimentar os milhões de famintos na Terra
O aval dos executivos da emissora nova-iorquina NBC, Roddenberry só obteve ao rodar um segundo piloto, Where No Man Has Gone Before [Onde Nenhum Homem Jamais Esteve], cujo título seria incorporado à solene e inconfundível marcha de abertura. Com um roteiro falando de percepção extrassensorial e do desejo do homem de ser Deus, trazia personagens e elenco quase que totalmente renovados. À exceção de Spock, via-se pela primeira vez o capitão James Tiberius Kirk [William Shatner], o engenheiro-chefe escocês Montgomery Scott [James Doohan] e o tenente-navegador e botânico japonês Hikaru Kato Sulu [George Takei]. Se não tinha a mesma densidade do piloto anterior, este ao menos serviu para impulsionar a série rumo aos aparelhos televisivos dos lares da classe média norte-americana. Assim, na histórica data de 22 de setembro de 1966, foi pela primeira vez ao ar a produção dos estúdios Desilu em associação com a Norway Corporation.
Baluarte da inteligência e da qualidade na TV, Jornada nas Estrelas teve de fazer diversas concessões a esse meio, as quais por vezes comprometeram a dignidade do espetáculo, porém jamais se rendeu às banalidades, aos convencionalismos e ao apelo fácil. Se figurinos, cenários e efeitos especiais deixavam a desejar, devido ao baixo orçamento, isso era largamente compensado pelos roteiros extremamente criativos e pelo magnífico desempenho dos atores. Os termos e inferições que empregava nas áreas técnica e humana — distâncias interestelares, planos interdimensionais, hierarquia de comando, disciplina, temores, desejos e frustrações que escondemos de nós mesmos etc — fugiam de uma audiência habitual de massa, popularesca, de modo que não angariou os índices necessários para completar a sua missão de cinco anos para exploração de novos mundos, para pesquisar novas formas de vida, novas civilizações.
Viagens interplanetárias
O fracasso levou a NBC à decisão de suspender a série depois de apenas duas temporadas. Não fosse uma inesperada e surpreendente mobilização popular — um milhão de cartas de protesto enviadas, entre elas as de Isaac Asimov, Arthur C. Clarke e Carl Sagan, e os escritórios da emissora cercados —, não seria prorrogada por mais um ano, até junho de 1969. Cancelada, seus 79 episódios passaram a ser exibidos e represados por emissoras de 75 países. Nessa altura, o homem já havia pisado na Lua e a ideia de viagens interplanetárias não
parecia tão inverossímil. Muito à frente de seu tempo, embora refletisse os problemas e inquietações da década de 60, Jornada nas Estrelas não causou impacto logo de saída, entrementes, conforme se superpunha aos próprios avanços da sociedade, arrebatava um contingente cada vez maior de fiéis seguidores, responsáveis pela gênese e consubstanciação de um culto de dimensões verdadeiramente religiosas.
Religião, paradoxalmente, era algo que o “profeta” Roddenberry abominava. Ateu convicto, sempre fez questão de externar seu desprezo ao divino e às instituições eclesiásticas — na Enterprise não havia padres, templos ou capelas. Sacerdotes e pregadores aparecem somente como opressores, enganadores, charlatães e ilusionistas a serem desmascarados e banidos. A magia, tal como pontuara Clarke, não passava de tecnologias mal compreendidas e interpretadas. Invocando Nietzsche, não cansou de denunciar as falsidades que induzem ao misticismo e a crença.
Guru agnóstico, Roddenberry depositava sua fé não no sobrenatural e inefável, mas no homem e na tecnologia, os quais, apesar de muitas vezes se desviarem dos bons e nobres caminhos e servirem a propósitos nada edificantes, tenderiam ao aprimoramento e não a degradação. Ele era um iluminista-positivista, confiante na força do progresso e na supremacia da razão. A despeito desse descomprometimento com Deus sob os auspícios da autossuficiência humana, indivíduos profundamente religiosos como o líder budista Dalai Lama se declararam admiradores da série.
Jornada nas Estrelas V: A Fronteira Final [Star Trek V: The Final Frontier], longa-metragem dirigido por William Shatner em 1989, é o auge dessa iconoclastia. A tripulação tem suas férias interrompidas ao ser enviada a uma missão de resgate. Viajando às pressas, com a nave ainda necessitando de reparos, são sequestrados e doutrinados por um meio-irmão de Spock pouco afeito à lógica e obcecado por questiúnculas espiritualoides que os obriga a traçar curso direto à morada de Deus em pessoa, situada, segundo acreditava, algures pouco além de uma barreira cósmica a qual ninguém jamais sobrevivera.
O lamento por Adônis
Com sorte, atravessam-na ilesos e se transportam à superfície de um planeta onde encontram uma forma de energia poderosa que assume a feição de variadas deidades até tomar os contornos daquela que mais condizia com suas expectativas. “Deus” exige então que lhes cedam a Enterprise para tirá-lo daquela área distante e levar sua “luz” a outras paragens. Em um momento antológico, Kirk questiona: “Desculpe-me, mas por que Deus precisa de uma nave para se locomover?”, ao que é atingido à queima-roupa pelos raios emanados dos olhos irados do “Senhor” — que se revela uma criatura torpe que há incontáveis tempos fora encerrada ali por ter cometido atrocidades.
Justificativas para infundir dúvidas acerca da natureza dos deuses do passado nunca faltaram, a julgar pelo modo como agiam e se comportavam. Pairar sobre as atônitas e aterrorizadas multidões a bordo de resplandecentes e barulhentas “carruagens de fogo”, por exemplo, não condiz com atribuições propriamente divinas. Em 1968, inspirados talvez no recém-lançado Eram os Deuses Astronautas?, de Erich von Däniken, Gilbert Ralston roteirizou e Marc Daniels dirigiu Who Mourns for Adonais? [O Lamento por Adônis], um dos mais sugestivos e provocantes episódios, em que o deus grego Apolo em pessoa imobiliza a Enterprise e exige ser adorado como na época da Antiguidade Clássica, desdenhando séculos de evolução humana.
Com o auxílio dos instrumentos, a tripulação consegue definir o local exato no planeta Pollux IV onde Apolo ocultava aparatos e a fonte de energia que fluía para seu corpo conferindo-lhe a capacidade de aparecer e desaparecer e de atirar raios pelas mãos: o próprio templo em que se sentava, em uma alusão ao de Delfos, um dos vários nos quais o povo lhe devotava adoração, visto que era, por excelência, o deus-oráculo. Filho de Júpiter e Latona, irmão de Diana e chefe das nove musas, Apolo, divindade do dia, da poesia, da música, da medicina e das artes, também era chamado de Febo, por conduzir o Carro do Sol.
A cidade à beira da eternidade
De maneira acertada, Kirk conclui que Apolo integrara um grupo altamente avançado de viajantes espaciais que detinham o controle de grandes quantidades de energia e o poder de alterar à vontade suas formas. Ao aterrissarem na região mediterrânea, não podiam ser tomados por outra coisa senão deuses pelas populações rurais que ali viviam. Convencido de que extraterrestres ensejaram a base dos mitos clássicos, em 1976 o historiador W. Raymond Drake tentaria provar o enunciado no livro Deuses e Astronautas na Grécia e Roma Antigas [Gods and Spacemen in Greece and Rome].
Manifestar velada e subliminarmente certas posturas e visões de mundo determinou a opção de Roddenberry pela ficção, conforme justificou: “Só através dela eu podia falar, naquela época, das coisas que desejava. Porque não havia realismo, podíamos contar uma história antibelicista, nos declarar contra o envolvimento no Vietnã, ter uma tripulação multirracial na Enterprise, com papéis-chave interpretados por mulheres. Essas ideias eram inaceitáveis na televisão de então, mas nós podíamos abordá-las em um show de ficção científica”.
Tomando uma rota hiperbólica na direção de onde vieram, provocam uma explosão controlada dentro dos propulsores, ao que são arremessados para trás a uma velocidade tremenda, fazendo-os retornarem três dias no tempo
Gene encarou o racismo norte-americano escalando para o papel de tenente e oficial de comunicações Nyota Uhura, uma mulher negra, a atriz Nichelle Nichols, que encenaria com Shatner o primeiro beijo inter-racial da história da TV norte-americana no episódio Plato’s Stepchildren [Os Enteados de Platão], só levado ao ar sem a censura dos executivos da NBC graças à providencial intervenção do líder negro pacifista Martin Luther King. Ao saber que o jornal oficial Pravda havia criticado a série por “ignorar as conquistas tecnológicas do povo soviético”, Roddenberry tratou logo de colocar a bordo um russo, o alferes e navegador Pavel Andreievich Checov [Walter Koenig] — com isso antecipando-se em duas décadas à Perestroika e ao fim da Guerra Fria. Sob a capa da fantasia, Gene aproveitou todas as ocasiões para a
tacar a moral, o senso comum, o puritanismo e o conservadorismo.
Vários autores do gênero escreveram roteiros — sujeitos ao crivo dos consultores da série que quase sempre os reescreviam —, entre eles Theodore Sturgeon, Harlan Ellison, Richard Matheson, Jerry Sohl, Robert Bloch, Max Ehrlich, David Gerrold e Jerome Bixby. Na direção, revezaram-se nomes como Marc Daniels, James Goldstone, Robert Butler, John Newland, Marvin Chomsky, Ralph Senensky, Robert Sparr, Joseph Sargent, Vincent McEveety, Judd Taylor, Don McDougall, Michael O’Herlihy e o veterano do cinema Joseph Pevney, aliás, quem mais assinou episódios, inclusive aquele que é apontado como o melhor da fase clássica: City on The Edge of Forever [A Cidade à Beira da Eternidade], de 1968, escrito por Harlan Ellison e laureado com o Prêmio Hugo.
Anomalias espaços-temporais
Um turbulento deslocamento espacial causado por distúrbios temporais provenientes de um planeta desconhecido chacoalha a Enterprise, e nisso o oficial médico-chefe doutor Leonard H. McCoy [DeForest Kelley] — um humanista apegado às tradições, avesso ao protocolo militar e à fria lógica vulcana — injeta acidentalmente em si mesmo uma alta dose de cortrasina [Estimulante que em excesso provoca delírios paranoicos]. Tomado pela loucura, McCoy se teletransporta para o centro do distúrbio temporal. Kirk, Spock, Scott e Uhura descem em seu encalço e se deparam com ruínas milenares que se estendem por toda parte. Entre elas há um portal que é o epicentro das anomalias espaços-temporais.
“Eu sou o guardião da eternidade. Sou meu próprio começo e meu fim”, diz em tom enigmático oferecendo em seguida uma passagem para outros tempos e dimensões. Inadvertidamente, McCoy atravessa o portal e uma vez no passado, altera o futuro da Terra de modo que a Enterprise desaparece como se nunca houvesse existido — a Kirk e Spock só resta se anteciparem à chegada de McCoy e assim vão parar na Nova York de 1930, em plena época da Grande Depressão. Portando-se como desvalidos, se abrigam em um albergue onde contam com os préstimos da jovem assistente social Edith Keeler [Joan Collins] que, além de altruísta e sonhadora, se revela uma autêntica visionária ao fazer a seguinte preleção aos indigentes que saboreavam uma tigela de sopa no refeitório: “Eu insisto que sobrevivam porque os dias e os anos à frente valerão à pena ser vividos. E um dia, em breve, o homem será capaz de controlar energias incríveis. E quem sabe até o átomo. Energias que poderão nos levar a outros mundos em naves espaciais. E os homens que forem ao espaço serão capazes de alimentar os milhões de famintos da Terra e curar suas doenças. Serão capazes de encontrar um meio de esperança para um futuro melhor. Pois esses anos valerão à pena ser vividos”.
Enquanto esperam por McCoy e não estão ocupados em servir comida e limpar o albergue, Kirk se enamora por Keeler, e Spock se entrega à tarefa de construir — com materiais pouco melhores do que pedra lascada e barro fofo, conforme reclamou — um circuito de memória mnemônica, através do qual capta imagens esparsas do futuro entrevendo duas ordens de eventos: uma em que Keeler morre em um acidente de trânsito e outra em que se torna líder de um movimento pacifista que consegue retardar a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, proporcionando aos nazistas o tempo necessário para construírem a bomba atômica e consequentemente dominar o mundo. Destarte, Spock conclui que Keeler é o ponto focal para onde foram atraídos, e McCoy, o elemento do acaso. Apaixonado, Kirk se lamenta, pesaroso, porém aceita a inevitabilidade do destino e impede McCoy de salvá-la no exato instante em que ia ser atropelada — e com a história recolocada em seus devidos eixos.
Licenças poéticas à parte, o fato é que não faltam místicos, contatados, astroarqueólogos, ufólogos etc, que garantem saber da existência, em determinados pontos da Terra, preferencialmente próximos a ruínas e sítios arqueológicos ou “paisagens encantadas” — o Brasil é pródigo em ambas — de portais remanescentes de antigas civilizações perdidas que conduzem a outros mundos, inclusive subterrâneos, a outros tempos e dimensões. Também não faltam os que garantem ter visto UFOs entrando e saindo desses portais ou de passagens abertas por eles mesmos no céu ou em encostas de montanhas.
Tempo de nudez
Sempre que a Enterprise transpõe além das sendas do espaço as do tempo, suas viagens ganham em requinte, qualidade e emoção, enriquecendo-se sobremaneira. Isso pode ser conferido em episódios como Time Squared [Tempo ao Quadrado] e Yesterday’s Enterprise [Elo Perdido], de A Nova Geração, e filmes como Jornada nas Estrelas IV: A Volta Para Casa [Star Trek IV: The Voyage Home], dirigido por Leonard Nimoy em 1986, Jornada nas Estrelas: A Nova Geração [Star Trek Generations], dirigido por David Carson em 1994, e Jornada nas Estrelas: Primeiro Contato [Star Trek: First Contact], dirigido por Jonathan Frakes [O primeiro oficial William Thomas Riker de A Nova Geração] em 1996.
A vertente prevista pela física relativística começou a ser explorada já em um dos primeiros episódios da série clássica: Tempo de Nudez [The Naked Time], escrito por John D. F. Black e dirigido por Marc Daniels. Ao averiguar as estranhas circunstâncias da morte de seis cientistas da Federação instalados no posto avançado de um planeta moribundo, um oficial é contaminado por gotículas de água transmutada em uma cadeia de moléculas complexas, cujos efeitos, semelhantes aos do álcool, reprimem o senso de autocontrole e ensejam comportamentos excêntricos. Uma variação desse líquido voltou a afetar a tripulação da Enterprise, só que a da Nova Geração, no episódio A Hora Nua [The Naked Now]. Antes que McCoy isolasse o “agente etílico” e produzisse um antídoto, este se espalha através da transpiração, não poupando Spock — que não resiste e chora, liberando suas emoções — e Kirk.
Amanhã é ontem
Incumbida de recolher dados e acompanhar o processo de compactação do planeta, a Enterprise é mantida em órbita apertada e traiçoeira, entretanto, com os motores de dobra sabotados por um dos oficiais em estado alterado, corre sérios riscos de não escapar da intensa atraç&a
tilde;o gravitacional. Ante a iminência da catástrofe cósmica, Spock propõe uma fórmula de mistura interna, nunca tentada, entre tempo e antimatéria. Tomando uma rota hiperbólica na direção de onde vieram, provocam uma explosão controlada dentro dos propulsores, ao que são arremessados para trás a uma velocidade tremenda, que ultrapassa a escala, fazendo-os retornarem três dias no tempo. Confirmava-se assim a possibilidade prática de se deslocarem a qualquer época do passado ou do futuro.
Nenhum outro episódio diz mais respeito à Ufologia do que Amanhã É Ontem [Tomorrow is Yesterday], escrito por D. C. Fontana e dirigido por Michael O’Herlihy. No final da década de 60, às vésperas do primeiro passeio do homem na Lua, um UFO é detectado pelos radares de uma base da USAF. E lá está ele contra o céu azul. É a Enterprise. Kirk: “Diário de bordo, data estelar 3113.2. Estávamos em rota para a Base Estelar 9 para reabastecimento, quando a enorme atração gravitacional nos pegou. Isso exigiu toda a força de dobra reversa para nos afastar do buraco negro. Mas como o elástico que se rompe, o escape nos jogou fora de controle através do espaço”. Um caça armado com mísseis nucleares parte para interceptar o “UFO”, e o piloto o descreve como “algo grande, com duas projeções cilíndricas no topo e uma embaixo”. Sem os escudos e contando apenas com a força de empuxo, vulnerável portanto a ataques, mesmo os do tipo convencional, Kirk ordena o travamento dos raios tratores sobre o jato que não resiste à força empregada e se rompe, partindo-se em pedaços.
Como sabem os sociólogos, os psicólogos e os publicitários, às vezes bastam um nome e uma imagem apropriados para que um produto ou uma pessoa adquiram suficiente consistência cultural e se convertam em um fenômeno de massas
O piloto é imediatamente teletransportado e, uma vez a bordo, pensa ter sido capturado por extraterrestres. Impagável é a cena em que o piloto, John Christopher, diz a Kirk, depois de este tentar explicar que procediam do futuro, que nunca acreditara em homenzinhos verdes e, na sequência, ao chegar na ponte, depara-se com Spock, que retruca: “Nem eu”. Spock lembra o capitão de que o piloto não poderia ser devolvido à Terra, pois já sabia o suficiente para que algum homem inescrupuloso manipulasse o presente e consequentemente alterasse o futuro, fazendo com que tudo o que conheciam, incluindo eles próprios, viessem a não existir. Porém, consultando os registros históricos dos computadores da nave, admite que afinal teriam de mandá-lo de volta, visto que seu filho, ainda por nascer, dirigiria a primeira sonda bem sucedida a Saturno.
Premidos por esse imperativo, urgia eliminar as provas — fotos tiradas pelas câmeras do avião e gravações das transmissões de rádio — atestando que ali estiveram presentes. Kirk tenta amenizar a situação, dizendo que “pelas lições de história, essas coisas eram consideradas como balões meteorológicos, efeitos do Sol, coisas explicáveis publicamente”. Todavia, lembra Spock, “nosso raio trator prendeu e destruiu um avião da Aeronáutica. Seria impossível explicar como outra coisa a não ser um UFO genuíno, possivelmente alienígena, com instinto agressivo”. Recuperando os registros e as fotos, se o piloto se sentisse obrigado a relatar o que vira, não haveria provas para apoiá-lo. “E isso me tornará um mentiroso ou um louco”, protesta Christopher. “De jeito nenhum. Será mais um dos milhares que acreditam ter visto um UFO”, arremata Spock. Kirk e Sulu entram na Divisão de Serviço Estatístico e no Laboratório Fotográfico da Base Aérea e depois de muitas peripécias e de serem flagrados pelos guardas, conseguem roubar os registros.
A única solução possível para voltarem, concordam Spock e Scott, é a aplicação de uma força reversa, o “efeito rebote”, igual ao que os jogou ali. Os cálculos de Spock indicavam que se fossem em direção ao Sol procurando sua atração magnética e se afastassem a toda força, o rebote os jogaria em outra dobra temporal: “Enquanto nos movemos cada vez mais rápido para o Sol, começaremos a voltar no tempo. Voltaremos para antes de ontem, antes do momento em que aparecemos no céu, então nos libertando nos jogará à frente no tempo e nós transportaremos Christopher a um instante antes de tudo acontecer”. Kirk rejubila-se: “Não terá nada para lembrar porque não terá acontecido”.
Primeiro contato
Orçado para que fosse um dos melhores filmes da franquia até então realizados para o cinema, Primeiro Contato foi o primeiro protagonizado exclusivamente pelos atores de A Nova Geração e o oitavo desde Jornada nas Estrelas: O Filme [Star Trek: The Motion Picture], dirigido em 1979 pelo tarimbado Robert Wise, o mesmo de clássicos como O Dia em que a Terra Parou. Em Primeiro Contato vemos uma overdose dos ingredientes e dos clichês que fizeram o sucesso da série: drama, tensão, suspense, tragédia, ação, aventura, rebeldia, romance, humor, carisma, roteiro inteligente e trama bem solucionada, escorados pelos efeitos especiais da Industrial Light and Magic, de George Lucas.
Os “borgs”, os mais terríveis e poderosos inimigos já enfrentados pela Federação, ditam o ritmo e injetam o dobro de emoção. Provenientes de um canto distante da galáxia, a milhares de anos-luz, são a perfeita combinação entre o orgânico e o cibernético. Detentores de avançadíssimos conhecimentos tecnológicos acumulados ao longo de suas intermináveis conquistas que lhes permitem se adaptarem a qualquer arma em poucos segundos, por onde passam assimilam, absorvem e eliminam espécies, culturas e planetas inteiros, não deixando nenhum resquício de individualidade. De índole totalitária e coletivista e mentalmente interligados entre si, agem em conjunto, tais como as abelhas e formigas. Irredutíveis, decretam o seu lema, em tom de ultimato: “Resistir é inútil”.
O tão temido dia em que os borgs desfechariam um ataque à Terra é chegado. As naves da Frota são convocadas, mas a Enterprise E, de visual inteiramente renovado — por sinal belíssimo, evocando um estilo gótico ou dark —, mais compacta e dinâmica do que o modelo D, destruído no final do longa-metragem anterior [A Nova Geração], é preterida pelo comando da Frota que alega não confiar em um capitão que fora assimilado e conv
ive desde então com as memórias borg implantadas em seu inconsciente. Esse fato ocorreu no episódio duplo The Best of Both Worlds [O Melhor de Dois Mundos], que fecha a terceira temporada da série e é um dos pontos altos de A Nova Geração. O elemento instável em questão é ninguém menos do que o francês Jean-Luc Picard [Patrick Stewart], um intelectual refinado, ao mesmo tempo ponderado, reflexivo e audacioso, apaixonado por história, arqueologia e filosofia. Roddenberry diz ter criado o personagem, mais velho e experiente do que Kirk, em homenagem ao oceanógrafo e navegador Jacques Cousteau. Picard sabe que os laços, nunca rompidos, que o mantiveram unido aos borgs no passado, tornavam-no o homem ideal para combatê-los e o único capaz de entender e antecipar seu modus operandi.
Em dobra máxima
Prenunciando o que estava por vir, ele aparece ouvindo a gravação de Lês Troyens, ópera composta pelo músico romântico francês Louis Hector Berlioz. A referência às tragédias individuais da Guerra de Troia ganha sentido na tentativa dos borgs de reeditarem o engenhoso estratagema urdido pelos gregos para tomar essa antiga cidade semilegendária da Ásia Menor — só que em vez do cavalo de madeira, é a Enterprise que eles pretendem usar. Contando com o apoio total da tripulação, Picard desobedece as ordens do comando e parte em dobra máxima ao front de batalha, onde orienta as outras naves e ajuda a destruir um cubo borg que antes de explodir libera uma esfera que ruma direto à Terra. Os sensores mostram partículas cronométricas emanando da esfera, indicativas da criação de um vórtex temporal.
No encalço, a Enterprise é apanhada pelo rastro, ficando protegida dos reflexos em longo prazo advindos de uma drástica mudança histórica. Atônita, a tripulação descobre que a Terra fora integralmente assimilada e agora a população são de nove bilhões. Todos borgs! Só resta continuar regredindo no tempo e corrigir os estragos no passado, não por acaso em plena segunda metade do século XXI, 10 anos após a Terceira Guerra Mundial, quando a maioria das cidades se encontrava em ruínas e imersa na anarquia. A missão que se impõe na decisiva data de 04 de abril de 2063, é impedir que os borgs assimilem a Enterprise e sabotem o teste do foguete que inauguraria a era da dobra espacial e das viagens interplanetárias e ensejaria o primeiro contato oficial da então ingênua humanidade com uma raça extraterrestre: os vulcanos!
Vulcanos e romulanos
Sorumbáticos, frios, disciplinados e devotados à lógica, sua compleição física é semelhante a dos humanos e idêntica a dos hostis, guerreiros e orgulhosos romulanos, com quem compartilhavam o planeta Vulcano — diferenciando-se apenas pelas sobrancelhas retas e orelhas pontudas. Seu planeta tem atmosfera rarefeita, com temperaturas altas de dia e baixas de noite. Seria mera coincidência que simultaneamente à popularização do seriado e do personagem Spock, em especial, começassem a surgir relatos de testemunhas e contatados aludindo justamente a seres com tal tipo de aparência e característica?
Recapitulemos um acontecimento que pela época, circunstâncias e localização, demonstra cabalmente o quanto certas imagens, de tão consagradas, fixaram-se no imaginário coletivo da população, mesmo daquela vivendo em regiões distantes dos centros urbanos. Cabe perguntar se nesses tempos globalizantes ainda haveria alguém totalmente isolado e imune à contaminação cultural propagada principalmente pelos países do Primeiro Mundo. Conforme apurou o ufólogo Reginaldo de Athayde, presidente do Centro de Pesquisas Ufológicas (CPU) e coeditor da Revista UFO, em meados de 1994, no município de Pacajús, estado do Ceará, Joaquina Nogueira de Sousa voltava da pequena vila para o Sítio Pedra Branca, quando viu surgir à sua frente, como que saindo do nada, “um casal de seres luminosos” envergando roupas fosforescentes coladas ao corpo.
Ele era alto e forte, tinha cabelos negros e fofos penteados para trás, pele de cor parda, queixo saliente, olhos rasgados, sobrancelhas em ângulo e orelhas pontudas, maiores do que as humanas. O ser falou, em um tom grave e seguro: “Eu sou Karran. Estamos aqui de passagem, já estivemos aqui antes. Não temas”. A mulher, com os mesmos traços fisionômicos só que com uma silhueta feminina, tirou um aparelho do largo cinturão que ambos usavam. Aquilo começou a estalar e ela o encostou na orelha direita, pronunciando palavras que Joaquina achou parecidas com “Ami”, “Sabatan” e “Radan”. Assim que seu irmão José de Arimatéia aproximou-se, o casal se afastou “evaporando-se” da mesma maneira como surgiu.
“Mas não deste mundo”
Reportou Athayde sobre o interessante fato: “Ao interrogarmos os irmãos contatados, verificamos que nunca haviam conversado sobre UFOs antes e que jamais souberam algo sobre o assunto. Igualmente, como pessoas muito simples do interior, que jamais ouviram falar sobre o caso do casal Hermínio e Bianca Reis, ocorrido na década de 70, em que um ser também se apresentou como Karran. O que apuramos em nossa investigação é que algo muito significativo realmente aconteceu aos irmãos. Pelos detalhes dados pelas testemunhas, estas de fato estiveram diante de seres semelhantes a humanos, mas não deste mundo. Trata-se de um caso polêmico, mas não acreditamos em embuste, pois envolve pessoas humildes, honestas e que nada lucrariam com a história, além de desconhecerem fatos ufológicos”.
Não lhes imputamos a pecha de mentirosos ou farsantes, porém pedimos licença ao renomado e veterano ufólogo Athayde para efetuarmos uma análise dos códigos, símbolos e arquétipos presentes no relato, haja vista serem tênues as fronteiras entre o concreto e o fantasioso, ou entre o real e o imaginário, os quais se misturam e se confundem frequentemente, seja na história, na mitologia ou na lenda. Mesmo aqueles que assistiram a apenas um ou dois episódios certamente terão reconhecido de pronto várias das marcas registradas do seriado, como o teletransporte — o casal de vulcanos surgiu do nada e evaporou-se no ar —, o uniforme fosforescente colado ao corpo, o cinturão portando instrumentos etc. Só faltaram a arma phaser e o emblema da Federação.
Ubíquo como Ashtar Sheran, Karran se faz presente no interior do Nordeste, evocando o casal Hermínio e Bianca Reis, famoso por alegar ter sido sequestrado pelos habitantes do planeta Klermer. Ora, este é
; um dos casos que mais agrega elementos de Jornada nas Estrelas, conforme demonstramos. Negligenciar certos detalhes pode compelir os menos avisados a aceitarem pressupostos disparatados. Referido pelo casal de irmãos do Ceará, o teletransporte, um dos recursos mais característicos e recorrentes do seriado, surgiu por uma simples questão de orçamento, pois era a forma mais prática e barata de levar a tripulação para a superfície de um planeta.
Os alienígenas de Jornada, igualmente por questões de orçamento, na maioria das vezes apresentam a forma humanoide. “Desde o começo expliquei aos ‘terráqueos’ que, diante dos milhões de planetas existentes na galáxia, seria lógico que os viajantes encontrassem formas de vida semelhantes à nossa. Isso me permitia manter um orçamento razoável, sem precisar criar cenários muito extravagantes”, esclareceu Roddenberry. A imaginação popular e as obras de ficção científica criaram imagens de monstros terríficos, mas também de antropomorfos semelhantes ao homem. Por que os extraterrestres se parecem tanto com essas entidades? Aliás, nunca houve um tipo descrito que já não tivesse sido retratado pela ficção. Como há muito tempo sabem os sociólogos, os psicólogos e os publicitários, às vezes bastam um nome e uma imagem apropriados para que um produto ou uma pessoa adquiram suficiente consistência cultural e se convertam em um fenômeno de massas.
Missão de misericórdia
Os roteiristas de Jornada sempre foram pródigos em colocar a tripulação defronte ou no encalço de poderes e mistérios que ultrapassavam os limites do conhecido, mas que, na aparência, pareciam humanos, demasiado humanos. Era uma fórmula corrente entre os ficcionistas de se referirem às injunções da vida, quer fossem elas inerentes a entidades equiparáveis a deuses ou aos próprios homens. No episódio Errand of Mercy [Missão de Misericórdia], escrito e coproduzido por Gene L. Coon e dirigido por John Newland, Kirk e Spock descem ao planeta Orgânia, habitado por uma cultura que o tricorder [Misto de computador, sensor e gravador portátil] indica estar estagnada há 10 milênios em patamares medievais, a fim de evitarem a invasão do Império Klingon, raça militarista e guerreira que de primeira e grande inimiga da Federação, evocando os russos, passaria a aliada a partir de A Nova Geração. Entretanto, para surpresa das duas partes em disputa, os organianos se revelam seres totalmente incorpóreos e puramente energéticos. A forma humanoide que haviam assumido e as construções erguidas à sua volta se constituíam em meros convencionalismos para que os visitantes pudessem ter pontos de referência decodificáveis. Como disse Spock, “os organianos estão para nós na escala da evolução assim como estamos para a ameba”.
Alice no País das Maravilhas
Já em Shore Leave [A Licença], escrito por Theodore Sturgeon e dirigido por Robert Sparr, a tripulação desembarca no planeta Omicron Delta, de paisagem aprazível, bucólica e encantadora, ideal para um período de descanso. Na superfície, não se via animais, artefatos ou campos de força. O que se verá, estranhamente, é a materialização e o desfile de elementos conhecidos, porém destoantes daquele cenário extraterrestre: o coelho branco de Alice no País das Maravilhas, o galanteador Don Juan, um avião de combate da Primeira Guerra Mundial, um samurai, um cavaleiro medieval, um tigre etc, em uma inventiva confusão de épocas. O que não se sabia é que no subsolo havia um complexo industrial subterrâneo onde os pensamentos eram lidos e as coisas fornecidas. O lugar funcionava como uma espécie de parque de diversões mantido por uma civilização avançadíssima.
Nonsense ou inverossímil, a fantasia do seriado segue a mesma linha de Jacques Vallée, sugerindo-nos a atuação de uma inteligência desconhecida, extraterrestre ou não, coabitante deste planeta, que há milhares ou milhões de anos, remontando às nossas origens, estaria nos perscrutando de modo a nos manipular, fornecendo imagens e sensações consistentes e compatíveis com a estr