Nascido em Nova York, Carl Edward Sagan (1934-1996) costumava dizer que seus pais, apesar de não terem formação superior, haviam lhe ensinado o “saudável ceticismo” que considerava condição indispensável para o exercício da atividade científica. Licenciado em física e doutor em astronomia pela Universidade de Chicago, lecionou em Harvard, Stanford e Cornell, tendo montado, neste último, o famoso laboratório de estudos planetários. O seu assunto preferido era a exobiologia ou a busca de vida extraterrestre. Colaborou intensamente com a agência espacial norte-americana, a NASA, ajudando-a a conceber missões espaciais robotizadas. Em 1977, com sua esposa Ann Druyan, elaborou uma alentada descrição de todo o conhecimento cultural, científico e social até então acumulado da Terra, que foi gravada em um disco de ouro anexado à sonda espacial Voyager, que deixou o Sistema Solar rumo ao espaço incomensurável.
Autor de 13 livros e incansável popularizador de assuntos científicos, ganhou um prêmio Pulitzer de literatura em 1978 e três Emmys, pela série de televisão Cosmos [1980], apresentada na rede pública norte-americana. Calcula-se que 500 milhões de pessoas em 60 países – inclusive no Brasil –, tenham assistido à série. Alguns colegas o criticavam pela “supersimplificação” e massificação que promovia para atrair a audiência dos telespectadores. A despeito disso, todos reconheciam que, além de sua condição de pop star, era um dos astrofísicos mais talentosos de sua geração, com uma pesquisa original e relevante. Sagan deixou também um romance de ficção científica, Contato [1986] – adaptado em 1997 para o cinema com roteiro de Ann Druyan e direção de Robert Zemeckis –, que conta a saga de uma astrônoma que enfrenta enormes problemas para provar que havia se comunicado com seres extraterrestres.
Os ufólogos sempre consideraram ambígua sua postura: se de um lado definia o contato com uma civilização extraterrestre uma das missões precípuas da ciência, de outro rechaçava completamente a possibilidade de termos sido ou estarmos sendo visitados por UFOs. Nos últimos anos de sua vida, assombrado com a “escuridão” que parecia tomar conta do mundo, Sagan lançou-se em uma cruzada belicosa e intransigente contra tudo aquilo que classificava como “pseudociência” e “anticiência”, elegendo como alvo principal os ufólogos e a crença disseminada de que ETs seqüestram pessoas. Para ele, as abduções não passariam de versões reeditadas de visitas noturnas de súcubos [Demônios femininos que copulam com os homens durante o sono e causam pesadelos], e íncubos [A versão masculina dos súcubos]. “O que é mais plausível”, perguntava ele, “que nós estejamos enfrentando uma maciça, mas subestimada invasão de ETs violadores ou que as pessoas estejam sofrendo alguma experiência mental estranha, que não entendem?”
Racionalidade mítica e mágica — Em seu último livro O Mundo Assombrado pelos Demônios [Companhia das Letras, 1996], Sagan lamenta que a pseudociência e a superstição pareçam cada vez mais sedutoras e, para combatê-las, como que encarnando o papel de um iluminista do século XVIII, acende a vela do conhecimento científico para iluminar os dias de hoje e recuperar os valores da racionalidade. Sagan condena as religiões de um modo geral pelo fato de possuírem doutrinas incontestáveis, verdades absolutas e não admitirem questionamentos, ao contrário da ciência, que intrinsecamente, traz embutido em seu próprio âmago mecanismos de correção de erros.
Renitente em sua ortodoxia secularizada, Sagan afirma preferir o conhecimento, mesmo que isso cause insegurança, do que persistir na ignorância e nas “falsas verdades”. No entanto, ao obliterar que nem todos os religiosos abrem mão da racionalidade, valorizando apenas a emergência das crenças subjetivas, bem como nem todos os cientistas abrem mão do misticismo, creditando valor a dados objetivos, incorre em tremendo reducionismo. O que temos são novas possibilidades de arranjos das racionalidades. A racionalidade mítica e mágica rearranja-se com a científica, e vice-versa. É nesse conjunto que os indivíduos constroem, a partir dos elementos de sua cultura, uma cosmovisão [Conjunto de suposições e crenças usados para interpretar e formar opiniões acerca da humanidade] que responde às disposições e motivações específicas a determinados momentos e necessidades de suas vidas. Longe de constituírem um amontoado de idéias vagas que dizem respeito tão somente e relativamente a cada um, enlaçam-se em um sistema de crenças comuns em seus elementos essenciais. A propósito, o próprio Sagan reconhece que muitos sistemas de crenças pseudocientíficas e da Nova Era nascem da insatisfação com os valores e perspectivas convencionais, sendo, portanto, em si mesmos, um tipo de ceticismo.
Contudo, ao reivindicar um caráter hegemônico à ciência, Sagan chega a ser tão fundamentalista e dogmático quanto os religiosos e místicos que ataca. Em sua vanglória cientificista, decreta que a ciência deve reduzir todo o funcionamento da natureza em leis: “Mas é assim que tudo funciona, e se isso é reducionismo, que seja”, decreta com uma arrogância assustadora, típica de um déspota [Governante que detém poder absoluto]. No seu caso, um déspota esclarecido. Do alto de seu cientificismo, Sagan proclama-se um ser quase infalível e, por conseguinte, divino, o que o aproxima sobremaneira de um guru ou líder messiânico, para júbilo de seus seguidores céticos. Senão vejamos. Na parte do livro em que descreve o mecanismo pelo qual a ciência erra e se corrige, ele escreve: “Vou falar agora um pouco sobre os meus erros”, e ele lista cinco. O espaço dedicado aos seus erros toma pouco menos de meia página em um livro que tem mais de 400!
Crença e superstição — Tomado por uma compulsão fanática e obsessiva em varrer e eliminar todo tipo de crença e superstição do planeta e assim instaurar uma autêntica e assustadora República Platônica, sob a direção ilustradíssima de cientistas, Sagan, que sempre fora um astrofísico brilhante, lamentavelmente, no fim de sua vida, converteu-se em uma espécie de guru ou líder religioso dos céticos, a guiá-los rumo à terra prometida da ciência. No admirável mundo novo totalitário de Sagan, somente teriam lugar e seriam úteis aqueles que aderissem incondicionalmente aos dogmas científicos, restando à maioria das pessoas comuns apenas um lugar: o de indivíduos submersos numa sociedade submersa. Mas é reconfortante que esse tipo de stalinismo pseudocientífico não seja plenamente acolhido, nem mesmo entre os céticos mais empedernidos.