Há muito tempo o ser humano procura respostas para profundas reflexões filosóficas, entre elas a da habitabilidade de outros mundos. No Brasil Imperial, formaram-se diversos movimentos de intelectuais que se reuniam em grupos literários e sociedades científicas e se subdividiam conforme a adesão a correntes de pensamento européias – cientificismo, positivismo, liberalismo, spencerianismo e darwinismo social – ou segundo as instituições da qual faziam parte. Foi um período de intensa efervescência cultural e científica no Brasil e no mundo, em que surgiram reflexões acerca da filosofia pluralista, que trata da existência de seres extraterrestres. Entre os defensores dessas idéias estavam cientistas de peso, como os astrônomos William Herschel, descobridor do planeta Urano, em 13 de março de 1781, e Nicolas Camille Flammarion, defensor de que a cor vermelha de Marte seria vegetação e idealizador da teoria da pluralidade dos mundos habitados, escrevendo um livro sobre o assunto em 1861.
É nesse contexto que encontramos no Brasil Augusto Emílio Zaluar (1825-1882), médico, tradutor, poeta, jornalista e autor do primeiro romance científico brasileiro, O Doutor Benignus [Editora UFRJ, 1994]. Zaluar é, possivelmente, o primeiro ufólogo do qual temos notícia em nosso país. Ele começa seu livro informando o leitor que a história é verídica, mas que preferiu contá-la em forma de romance, ao estilo de Júlio Verne, um dos primeiros escritores a praticar uma literatura de antecipação, na linha da moderna ficção científica. Verne, entre outras obras, escreveu Viagem ao Centro da Terra (1864), A Volta ao Mundo em 80 Dias (1872) e Vinte Mil Léguas Submarinas (1869).
Decepção com o ser humano — Talvez com a intenção de evitar chocar demais o público da época, Zaluar inicia O Doutor Benignus com uma carta do herói da história – o próprio doutor Benignus – a Flammarion, em que diz estar decepcionado com o ser humano, “ente incompleto que tem a vaidade de supor-se o modelo mais perfeito e definitivo da natureza universal”. Benignus explica que sua frustração o obrigou a abandonar o convívio social, optando por viver em uma fazenda no Morro de Condor, em Minas Gerais. Ele descreve o céu do lugar, aproveitando para revelar seus conhecimentos de astronomia e para reafirmar a importância dos progressos da ciência, que pouco a pouco levam o homem à “alargar em seu espírito a idéia da divindade”. É óbvio que mantinha contato com eminentes personalidades do mundo todo, pois, na obra cita, e discorre sobre quase 100 nomes da ciência, filosofia, história e literatura.
É na fazenda adotada como refúgio que Benignus e seu criado peruano, Katini, estavam passeando em uma gruta da região, quando encontram uma folha seca de papiro em que estava desenhado um rosto redondo, do qual saíam dezenas de raios simbolizando o Sol. Abaixo da figura, a legenda: “À pora”. O doutor pressente tratar-se do prenúncio de assombrosas descobertas. Depois de analisar a misteriosa folha de papiro, faz uma longa dissertação sobre a importância do Sol e filosofa sobre a possibilidade da existência de vida naquela estrela e em outros astros. Benignus escreve na página 89 de seu livro [Nota do editor: nesta e nas seguintes reproduções do citado livro, as mesmas sofreram apenas ligeiras adaptações para melhor compreensão]:
“Por que razão não seriam o Sol e os outros mundos habitados? A Terra em que nós existimos e que encerra tantas maravilhas, não passa, no entanto, de um ponto insignificante no espaço. Sem falar em Mercúrio, Vênus, Marte, que são relativamente pequenos. Por que razão não seriam habitados também Júpiter, que é 1.400 vezes maior que a Terra, Saturno, cingido de seus círculos gigantescos e acompanhado por oito luas, distante de nós de tal modo que somos para ele quase invisíveis, Uranus, 29 vezes maior que o globo terrestre, e finalmente Neptuno, 100 vezes maior que nosso mundo e afastado dele um milhar e cento e cinqüenta milhões de léguas?”
Vida no Sol — Pesquisando em livros, Benignus descobre que, na língua tupi, à pora equivale à expressão latina ecce incolae, que significa “aqui há gente, aqui está povoado, aqui há habitantes”. Tal descoberta passa a ser, para ele, a prova da existência de vida no Sol. O doutor depara-se, então, com duas alternativas para resolver o problema, que ele expõe a Katini: “Ou irmos nós ao Sol, ou vir o Sol ter conosco”. Vemo-nos então confrontados com a possibilidade de extraterrestres terem visitado a Terra em tempos remotos e aqui deixado vestígios – assunto abordado em uma obra publicada em 1875, quase 80 anos antes de Erich von Däniken escrever Eram os Deuses Astronautas? [Melhoramentos, 2005. A primeira edição foi publicada em 1968]. Isso, no mínimo, faz com que sejamos precursores da Ufoarqueologia. Benignus decidiu observar o Sol em busca de uma resposta e, para tanto, planejou uma excursão ao interior do país, onde imaginava encontrar um ponto de observação mais adequado. Assim começou a primeira vigília ufológica de que temos notícia. Eis o impressionante relato do expedicionário:
“Entende o eminente astrônomo, que com razão que não é nas grandes cidades européias, onde a atmosfera está sempre viciada por grande quantidade de vapores estranhos, cuja densidade intercepta os raios da luz, produzindo notáveis alterações nos oculares, o lugar mais apropriado para estabelecer os melhores pontos de observações astronômicas. As vastas regiões da América oferecem neste sentido mais seguras condições de sucesso”.
Para realizar sua expedição, o autor publicou um anúncio nos jornais do Brasil Imperial convidando os chamados homens da ciência de todas as pátrias que se dispusessem a ajudá-lo na aventura. M. Gustavo de Fronville, especialista em ciências naturais e físicas, como se dizia na época, respondeu ao chamado. E logo Benignus percebeu que seu aliado possuía ainda outro objetivo: “O senhor observará a Terra e eu contemplarei o céu! Dois caminhos diversos, que vão dar no mesmo ponto, a grande lei da unidade universal!” No capítulo 16 do livro Zaluar descreve as vigílias feitas por Benignus, em que observava meteoros. Para o doutor, tais fenômenos, assim como as estrelas cadentes, são provenientes das profundezas do espaço e pertencem a anéis ou matéria cósmica que permanecem circulando o Sol. “De modo que Schia
parelli, primeiro, e Le Verrier, depois, chegaram por caminhos diversos a idênticas conclusões. Para eles, as estrelas cadentes provêm da desagregação de vastos grupos de matéria cósmica penetrando em nosso sistema”, relatou na obra.
Continuando sua caminhada pelo interior do Brasil, o doutor chegou à conclusão de que as estrelas podem ser outros sóis e que toda a matéria do universo teria os mesmos compostos. Novamente, ele vai defender a habitabilidade do Sol, pois acredita que o núcleo do astro não estaria em estado de fusão. Aqui notamos claramente a influência de Flammarion, que em A Pluralidade dos Mundos Habitados já dizia: “Pareciam mostrar no astro solar um globo escuro como os planetas, envolvido por duas atmosferas principais, das quais a exterior seria a fonte de luz e calor, e a interior teria o papel de refletir para fora esta luz e este calor, além de preservar o globo solar, que seria de espécie habitável”.
Eu estou decepcionado com o ser humano, um ente incompleto que tem a vaidade de supor-se o modelo mais perfeito e definitivo da natureza universal
– Doutor Benignus
Benignus conclui que a fotosfera solar é gasosa e que a estrela provoca a aurora boreal, um fenômeno luminoso que acontece no Pólo Norte, quando partículas carregadas eletricamente, como elétrons, são emanadas do Sol. Ao chegar na Terra, elas se chocam com os átomos de oxigênio e nitrogênio da atmosfera e produzem radiação. Conversando depois com M. Gustavo de Fronville, o doutor informa categoricamente: “O Sol é habitável. Os mundos que giram na infinidade do espaço são outros tantos centros de vida”. Ele rejeita, portanto, a idéia de mundos estéreis. A caravana segue viagem e, dois dias depois, já estava próxima a Leopoldina (MG).
Eram 16h00 quando um “imenso meteoro luminoso”, conforme descreveu, surgiu no céu e caiu fazendo estrondo a algumas centenas de metros do grupo. O acontecimento suscitou uma aula sobre meteoros, ministrada pelo narrador, e reforçou para Benignus a hipótese da habitabilidade dos mundos. O sábio resolveu examinar o aerólito à procura de algum indício da existência das “humanidades siderais”, uma idéia inovadora para a época, de que cometas podem ter vestígios de vida. Que o digam os estudiosos do meteorito ALH 84001, um pedaço de rocha proveniente de Marte, o primeiro de que temos conhecimento, coletado por exploradores em 1984 na região chamada Allan Hills, na Antártica.
Encontro com um alienígena — Hoje, acredita-se que o ALH 84001, com 1,9 kg, é um dos 30 meteoritos já encontrados na Terra, que foram arrancados de Marte por colisões do planeta com asteróides. Ele contém substâncias que indicam a possibilidade de vida em Marte no passado remoto. O ponto alto do livro O Doutor Benignus é o encontro que o protagonista teve com um ser etéreo, descrito como sendo de matéria sublimada e que lhe informou até mesmo a natureza relativa do tempo. A figura luminosa era semelhante ao que se pode imaginar de mais perfeito na forma humana, relatado como tendo “uma espécie de chama cor de ouro que se agitava às mais ligeiras ondulações do ar, sem perder nunca a pureza dos contornos”. Vejamos o relato deste encontro:
“Doutor Benignus, sou o habitante que tu procuravas inutilmente nas regiões do espaço. Assim como o homem, no mundo em que nasceu, é uma alma vestida de ar condensado, eu sou também uma alma vestida de luz. Venho das regiões siderais que tu procuras conhecer e se não fosse a tua impaciência de saber, tão rara entre teus semelhantes, que nos chegou a impressionar, eu nunca resolveria descer a um mundo tão ínfimo como este em que vives. Andei muito para te encontrar, mas a distância e o tempo, que representam papéis tão importantes em tua existência, para nós são como um ponto invariável. Viajei num raio de luz, a locomotiva mais rápida que se conhece, e andei trinta milhões de léguas em oito minutos”.
Teríamos aqui a primeira descrição de um contato com alienígenas dos tempos modernos? O relato feito por Augusto Emilio Zaluar em O Doutor Benignus se aproxima muito dos relatos de George Adamski e Truman Bethurum com seres de natureza supostamente não terrestre. Tais depoimentos se tornaram freqüentes nos anos 50 e 60, em todo o mundo e também no Brasil. Zaluar fez ainda, em sua obra, críticas à especialização crescente da ciência, defendendo que o conhecimento científico deveria estar acessível a todos, e não somente aos técnicos e especialistas. Ele já antevia a super especialização que aconteceria em nossa época. Tanto que, para ele, os “sábios oficiais” – pesquisadores de universidades e institutos – são em geral egoístas e intolerantes, a ponto de estarem convencidos de que pessoa alguma entende ou pode compreender a sua especialidade científica.
Mesmo vivendo em um período de transição, Zaluar fez ainda observações corretas e válidas sobre a vida na Terra, tanto para sua época quanto para a nossa. Hoje, mesmo os filósofos são especialistas em uma única área ou um único autor, sem contar os astrônomos e físicos. Talvez por isso não consigam aceitar o Fenômeno UFO, pois algo tão abrangente só pode ser compreendido por pessoas de formação múltipla. Enfim, o livro de Zaluar é empolgante e repleto de informações científicas, mas não está incluído em nenhuma lista de obras obrigatórias para vestibulandos e nem mesmo é utilizado por professores em sala de aula – talvez em decorrência da ousadia do autor. Afinal, se até hoje os contatos com naves e seres extraterrestres – que há muito tempo visitam nosso planeta – geram polêmica, imagine o leitor a repercussão que teriam as informações contidas num livro de 1875!
Além disso, a obra de Zaluar torna o Brasil precursor no campo das reflexões ufológicas, e mostra que existiam homens de espírito aberto para novas descobertas científicas, mesmo séculos atrás. Isso desmistifica a história que tentam nos contar, de que neste país, em sua fase imperial, só havia analfabetos, escravos e oligarcas pouco interessados em ciência. Sem dúvida, a história da Ufologia Brasileira não pode estar completa sem uma referência a Zaluar e seu pioneirismo, embora sua obra seja questionada. Alguns argumentam que as aventuras do doutor Benignus não passam de imaginação do autor. Até pode ser, mas isso em nada afeta o mérito de seu pioneirismo. Afinal, ele conseguiu traçar os princípios, de forma bastante contundente, de uma ciência que mais tarde chamaríamos Ufologia.