O mundo está prestes a testemunhar um raro espetáculo que antes enviava expedições por diversos pontos do globo e inspirava milhões de pessoas a saírem de casa e olharem para os céus. Em 8 de junho, moradores em determinados locais da Terra poderão ver Vênus cruzar a face do Sol em uma espécie de mini-eclipse, que é visível duas vezes em intervalos de mais de um século. A última ocorrência do chamado ?trânsito? de Vênus foi em 1882. O evento seria usado para responder uma das mais importantes perguntas científicas da época: qual é a distância exata entre o Sol e a Terra?Apesar dos estudos do evento terem fracassado em fornecer a resposta exata, eles estreitaram o intervalo de estimativas e medições, assim como anunciaram uma era de investimento na ciência como símbolo de prestígio nacional. Para aquele evento, o governo americano formou oito expedições objetivando realizar observações ao redor do mundo, em parte porque Grã-Bretanha, França, Rússia e outros rivais fizeram o mesmo.Refletindo sinais de radar no Sol e Vênus e usando medições de espaçonaves, os cientistas dos anos 60 calcularam que a distância média entre o Sol e a Terra é de 149.597.954 quilômetros, uma medida chamada unidade astronômica. Eles imaginaram por séculos que, se pudessem determinar tal número, eles poderiam usar as fórmulas de Johannes Kepler, um astrônomo do século 17, para calcular o tamanho do sistema solar e a distância exata entre os planetas.”Esta era a questão mais importante da época para a astronomia”, disse o dr. Jay M. Pasachoff, professor de astronomia na Williams College. “E utilizar os trânsitos de Vênus para calcular a unidade astronômica era a melhor forma de ?fazê-lo.?Apesar dos trânsitos de Vênus terem ocorrido por milhares de anos, o primeiro relato de sua travessia sutil diante Sol ocorreu em 1639. Os trânsitos ocorrem quando as órbitas de Vênus, da Terra e do Sol os colocam em alinhamento no mesmo plano. Desde 1639, os trânsitos ocorreram em 1761, 1769, 1874 e 1882. Se alguém perder o do próximo mês, haverá outra oportunidade em 6 de junho de 2012. Depois desta data, será necessário mais de um século até os próximos trânsitos, em 2117 e 2125.Devido à sua raridade, o trânsito do próximo mês, que será melhor visto na Europa e no Oriente Médio, está gerando grande interesse público e científico, disse o dr. Steven J. Dick, historiador-chefe da Administração Nacional de Aeronáutica e Espaço (Nasa) dos Estados Unidos. Dick já escreveu extensamente sobre os trânsitos dos séculos 18 e 19. Não há ninguém vivo que tenha visto o último trânsito, disse ele, e ver os próximos dois será a única chance que a maioria das pessoas terá. “Estes são realmente eventos únicos na vida”, disse Dick. “Apesar da importância científica ter diminuído, eu acho que haverá muito mais interesse desta vez entre o público, com base em e-mails que tenho recebido de várias partes do mundo”.O dr. David DeVorkin, curador de história da astronomia no Museu Nacional de Aeronáutica e Espaço, disse que os trânsitos de 1874 e 1882 apareceram com destaque nos jornais e revistas. Um clima de carnaval tomou conta de Wall Street para o trânsito de 6 de dezembro de 1882, com pessoas tomando as ruas e olhando para o céu através de vidro esfumaçado. “Foi uma diversão popular”, disse DeVorkin. “Algo que talvez nem todos tenham tentado ver, mas da qual todos falaram”.O interesse científico persiste. Instrumentos a bordo de pelo menos três satélites que observam o Sol, assim como telescópios no solo, acompanharão o evento. Os pesquisadores usarão o trânsito de Vênus para testar técnicas e instrumentos que poderão ser usados para detectar planetas em outros sistemas solares. Mais de 120 planetas extra-solares foram descobertos orbitando outras estrelas, a maioria deles corpos imensos encontrados porque sua gravidade afetava o movimento de suas estrelas. Os astrônomos detectaram recentemente um pequeno número de planetas distantes medindo as flutuações que causam na luz das estrelas que circundam. Em 2007, a Nasa planeja lançar a espaçonave Kepler para monitorar estrelas como o Sol, na esperança de detectar planetas do tamanho da Terra por meio de pequenas reduções no brilho das estrelas. Onde e quando ver Vênus Mesmo não tendo uma visão direta do trânsito porque ele ocorrerá durante a noite no oeste americano, os astrônomos da Universidade do Arizona esperam obter uma visão indireta. O dr. Glenn H. Schneider disse que ele e um colega, Paul S, Smith, tentarão usar o observatório Steward, em Tucson, para medir cerca de meia hora de luz solar do final do trânsito enquanto ele refletir na Lua. “Nós queremos ver se podemos detectar espectroscopicamente a assinatura da atmosfera de Vênus a partir da luz solar refletida na Lua, como se fosse uma leitura vinda de uma estrela distante”, disse Schneider.Os trânsitos geralmente ocorrem em um padrão previsível de dois ocorrendo em um período de oito anos, seguido por um 105 anos e meio depois, e outro oito anos depois daquele. Após 121,5 anos adicionais, o padrão se repete. As ocorrências com intervalo de oito anos ocorrem porque o ano venusiano equivale a 224,7 dias da Terra, tornando 13 anos venusianos iguais a oito anos da Terra. Isso permite que os planetas retornem para aproximadamente o mesmo alinhamento com o Sol em que estavam oito anos antes, após o qual eles saem de sincronia por mais de um século.Na terça-feira, 8 de junho, os observadores com sorte o bastante para assistir integralmente ao trânsito, verão Vênus como um pequeno ponto preto cruzando o hemisfério sul do Sol da esquerda para a direita. O planeta, que entrará no disco solar na posição oito horas, levará seis horas para cruzar a superfície brilhante antes de sair pela posição 5 horas. Vênus, parecendo um ponto preto redondo com o diâmetro de 1/32 do diâmetro do disco solar, deverá causar uma redução de um décimo de 1% na luz solar que atinge a Terra durante o evento.Localização é tudo, particularmente para pessoas que tentam testemunhar eventos celestiais. O trânsito integral será visível na Europa, em grande parte da África, no Oriente Médio e em grande parte da Ásia. As regiões desafortunadas do globo, onde o evento ocorrerá à noite e portanto não poderá ser visto, incluem o Oeste da América do Norte, incluindo grande parte dos Estados Unidos a oeste das Rochosas; o sul do Chile e Argentina; Havaí e Nova Zelândia. Algumas regiões verão apenas parte do trânsito, porque o Sol estará se pondo enquanto ele estiver em progresso. Tais áreas incluem a Austrália, Indonésia, Japão, Filipinas, Coréia e sudeste asiático.Da mesma forma, o Sol nascerá com o trânsito em progresso na costa leste da América do Norte, no Caribe, oeste da África e grande parte da América do Sul, o que permitirá aos observadores uma visão breve antes do término do evento. O quanto aqueles que acordarem cedo verão dependerá das condições do tempo e de quanto o Sol terá se erguido acima do horizonte antes de Vênus concluir sua travessia do disco solar.Em Nova York, o nascer do Sol será às 5h25, e Vênus deverá começar a deixar o disco solar às 7h06, quando o Sol estiver 17 graus acima do horizonte. O último contato do planeta com a borda do Sol deverá ocorrer às 7h26, quando o Sol estiver a 20 graus de altura. Os horários são semelhantes para a maioria das cidades no fuso horário da costa leste e uma hora mais cedo no fuso horário da região central. Mas quanto maior o deslocamento para oeste significará que o Sol estará abaixo do horizonte. HistóriaO interesse moderno nos trânsitos planetários pode ser traçado até Kepler. Com base em seus cálculos do movimento planetário, ele escreveu em 1627 que Mercúrio atravessaria a face do Sol em novembro de 1631 e que Vênus faria o mesmo em 6 de dezembro daquele ano. Kepler sugeriu que observadores posicionados em pontos estratégicos na Terra poderiam calcular indiretamente a distância do Sol usando Vênus.Tendo conhecimento da distânci
a entre os observadores e dos ângulos diferentes pelos quais assistiram ao trânsito, ele raciocinou: os astrônomos poderiam calcular a distância até Vênus e usá-la para computar a distância entre a Terra e o Sol. Kepler morreu um ano antes do trânsito de Vênus de 1631, mas ele não o teria visto mesmo se estivesse vivo, porque o fenômeno aconteceu à noite na Europa. Ele também teria perdido o trânsito seguinte, em 1639, porque ele cometeu um erro de cálculo que o impediu de prevê-lo.Felizmente, um jovem astrônomo inglês, Jeremiah Horrocks, interessou-se pelo trabalho de Kepler e, refazendo alguns cálculos do alemão, descobriu que o trânsito ocorreria em 24 de novembro de 1639. Horrocks testemunhou parte do trânsito de sua casa em Much Hoole, Lancashire, e um amigo dele, William Crabtree, o viu em Manchester.Os trânsitos seguintes, no século 18, atraíram muito mais atenção graças a Edmond Halley, o astrônomo britânico conhecido pelo cometa que leva seu nome. Halley sugeriu o uso dos trânsitos de 1761 e 1769 para calcular a distância entre o Sol e a Terra dispondo de observadores que cronometravam os eventos em latitudes diferentes, traçando o trajeto do planeta pela face do Sol como viram de suas posições. Medindo as mudanças de ângulo dos trajetos com base nas medições de tempo e posição, raciocinou Halley, a unidade astronômica poderia ser calculada.Apesar de Halley ter morrido em 1742, seu plano orientou muitas das observações dos dois trânsitos feitas ao redor do mundo. Mas os resultados variaram demais e foram decepcionantes. Entre os que tentaram resolver o problema em 1769 estava o explorador britânico capitão James Cook, que conduziu seu navio, o Endeavour, em sua primeira viagem até o sul do Pacífico para observar o trânsito do Taiti. Cook e outros ficaram frustrados em suas observações pela incapacidade de registrar o instante exato em que as bordas do planeta e do Sol pareciam se tocar. Quando Vênus se aproxima do disco solar, seu círculo preto parece se esvair na direção da borda do Sol sem mostrar um ponto claro de contato.Apesar do segundo preciso de contato ser necessário para os cálculos, este chamado fenômeno “gota preta” fez com que os observadores que acompanhavam o mesmo discordassem em vários segundos até um minuto quanto ao momento exato de contato entre as bordas. Cook e outros observadores especularam que o problema era causado pela distorção da luz através da atmosfera venusiana. Precisão astronômica No início deste ano, usando observações de espaçonaves, Pasachoff e outros cientistas concluíram que o efeito gota preta era causado por uma combinação de imagem borrada em telescópios de pequena abertura e a turvação natural da luz solar próxima da borda visível do Sol. Nos trânsitos do século 19, os cientistas tentaram superar tal efeito e outras imperfeições com melhores telescópios e a introdução da fotografia. Ainda assim, a medição e a cronometragem dos trânsitos nunca levaram a uma medição precisa da distância entre o Sol e a Terra.William Harkness, do observatório naval dos Estados Unidos, refinou os resultados dos trânsitos de 1882 e em 1894 chegou a uma unidade astronômica de 149.342.000 quilômetros. Mas o trabalho de outro cientista do observatório, Simon Newcomb, foi adotado como padrão mundial em um encontro de 1896 em Paris, disse Dick. Newcomb, que deu pouco crédito aos dados do trânsito, combinou valores de várias outras fontes, incluindo leituras de velocidade da luz das estrelas, para chegar ao número de cerca de 149.463.000 quilômetros. Ambos estavam próximos do valor moderno de 149.597.954 quilômetros, mas precisão é fundamental em termos astronômicos.Todavia, disse Dick, os trânsitos de Vênus continuam importantes porque o desejo de definir a unidade astronômica – e manter ou ganhar prestígio científico – levou muitas nações a realizarem expedições concorrentes. Em 1874, a Rússia enviou 26 expedições, a Grã-Bretanha enviou 12, os Estados Unidos enviaram oito, a Alemanha e a França enviaram seis cada, a Itália enviou três e a Holanda enviou uma. “Pode ser comparada à corrida espacial no século 20”, disse ele.