Parece até urucubaca. Não faz um ano, Tom Cruise perdeu a boca rica na Paramount porque o chefão da Viacom, Sumner M. Redstone, recusou-se a renovar seu contrato. Em dezembro de 2006, uma pesquisa de opinião pública o elegeu “o ator mais odiado da América”. Semana passada, Oprah Winfrey o desalojou do topo da lista das “100 celebridades mais influentes do mundo”, periodicamente computada pela revista Forbes. Cinco dias atrás, o governo de Angela Merkel proibiu o ator de rodar um filme em território alemão.
Nada disso teria acontecido se: 1) Cruise tivesse resistido ao proselitismo de sua primeira mulher (a atriz Mimi Rogers), responsável por sua conversão à Cientologia; 2) a Cientologia possuísse os poderes que Cruise e seus companheiros de fé lhe atribuem.
O contrato com a Paramount levou a breca porque Redstone se encheu do fanatismo “religioso” do ator, abusivamente empenhado na catequese de todos à sua volta. O veto às filmagens da nova produção de Cruise em Berlim e arredores também foi motivado pela aversão dos alemães à Cientologia, que não é, para eles, uma religião, mas um culto caça-níqueis.
Faz sete meses que o ator, em sociedade com a produtora executiva Paula Wagner, adquiriu o controle do miniestúdio da United Artists, prometendo a realização de quatro a cinco filmes por ano, a serem distribuídos pela MGM. A menos que o Ministério da Defesa alemão volte atrás de sua decisão, o primeiro da fila, Valkyrie, com direção de Bryan Singer (Os Suspeitos), terá de ser rodado em outra freguesia. Wagner lamentou o impasse (“Embora possamos filmá-lo em qualquer país, a Alemanha seria o lugar mais adequado”), não sem antes esclarecer que nunca passou pela cabeça de Cruise misturar suas crenças pessoais com seus deveres profissionais.
Valkyrie recria a Operação Valquíria, malograda conjuração para assassinar Hitler em 1944. Não é assunto tabu, nem sequer controverso, na Alemanha, desde pelo menos 1955, quando G.W. Pabst filmou Aconteceu em 20 de Julho, com o cineasta Bernhard Wicki no papel do coronel-conde Claus Schenk von Stauffenberg, autor do atentado a bomba contra o Führer. Em 2004, duas produções alemãs celebraram os 60 anos da conspiração: um docudrama (Die Stunde der Offiziere, de Hans-Erich Viet) e um longa de ficção (Stauffenberg, de Jo Baier, com Sebastian Joch).
Para encarnar Stauffenberg, Cruise terá de cobrir a vista esquerda com um tapa-olho, fingir que não tem a mão direita nem dois dedos da mão esquerda. Era assim aos 36 anos o culto, elegante e aristocrático coronel alemão, mutilado durante a campanha no norte da África, comandada pelo legendário marechal Rommel, a “Raposa do Deserto”, também envolvido no complô contra Hitler.
Stauffenberg sonhava com dar cabo de Hitler desde 1942. Infiltrado no núcleo decisório do Reich, escondeu uma bomba na “Toca do Lobo”, debaixo da mesa onde o Führer examinava alguns mapas, mas a explosão só feriu gravemente quatro dos 23 oficiais presentes. Protegido pelo grosso tampo da mesa, o alvo do atentado escapou praticamente ileso. Fazia duas semanas que as forças aliadas haviam invadido a Normandia; Hitler só teria mais 284 dias de vida – o suficiente, contudo, para vingar-se dos “traidores”. Ao longo de oito meses, os conjurados e seus parentes foram impiedosamente perseguidos e massacrados. Até uma criança de 3 anos e um velho de 85, pai de um primo de Stauffenberg, foram presos e executados.
Cruise poderia filmar Valkyrie na Polônia, já que a cidade, Rastenburg, em cujo bosque ficava o bunker nazista onde se deu o atentado, voltou a ser polonesa depois da 2ª Guerra, não mais com o nome de Rastembork, mas Ketrzyn. Resta apurar se os gêmeos Lech e Jaroslaw Kaczynski, presidente e primeiro-ministro da Polônia, nada têm contra a Cientologia.
Em princípio, não deveriam ter. A liberdade religiosa é plena na terra de João Paulo 2º. Ocorre que a Cientologia não é mesmo uma religião, e sim um “culto caça-níqueis”, um novo bezerro de ouro (US$ 30 mil o custo total de seu curso ou noviciado) cevado com as idéias dianoéticas de L. Ron Hubbard, autor de ficção-científica com veleidades paranormais, que morreu em 1986, aos 75 anos. Sua receita, pretensamente científica, para tudo curar sem remédios – substituídos, assim como os médicos e psicanalistas, por um processo de purificação espiritual -, fanatizou milhões de criaturas sugestionáveis, sobretudo nos EUA; com mais facilidade, é claro, na Califórnia, a Canaã das vigarices devocionistas.
Cruise, que na juventude adorava mosteiros, ficou impossível depois de alçado ao Nível OT-VII, penúltimo grau na hierarquia da seita. Espinafrou colegas que usam antidepressivos, montou constrangedoras tendas cientológicas no set de filmagens de A Guerra dos Mundos, até acusou a psicanálise de ser “uma ciência nazista”, despautério que poderia ser devolvido, como um bumerangue, à Cientologia; não às idéias de Hubbard em si, mas às práticas terroristas adotadas por vários ou muitos de seus evangelistas.
Há mais de 30 anos que cientologistas fazem o diabo para evitar a publicação e a comercialização de livros que contenham críticas à seita. Suas tropas de choque ameaçam e chantageiam autores, editores, gráficas, livreiros, divulgadores e jornalistas. Armados de argumentos inconsistentes, não conseguiram evitar que diversas diatribes contra a Cientologia fossem publicadas, mas causaram prejuízos consideráveis a George Malko, Paulette Cooper, Cyril Vosper, Robert Kaufman, Roy Wallis, Russell Miller, Bent Corydon e a outros estudiosos do asneirol hubbardiano e suas conseqüências.
Prejuízos não apenas pecuniários, mas também de ordem moral e física – com sobra para secretários e familiares dos autores. Bent Corydon só escapou de uma surra às vésperas de sua biografia crítica, L. Ron Hubbard: Messiah or Madman?, chegar às livrarias, em 1986, porque o brutamontes encarregado da mafiosa tarefa (Dennis Clarke, mais tarde promovido a diretor da Comissão de Direitos Humanos dos Cidadãos, bancada pelos cientologistas) se satisfez com dar um soco no assistente do autor. A perseguição a Corydon estendeu-se ao jornal St. Petersbug Times, da Flórida, ameaçado com um processo caso publicasse uma resenha do livro. O jornal não se deixou intimidar e teve sua coragem premiada pela Columbia Journalism Review.
Encurralada por 18 processos, Cooper, autora de The Scandal of Scientology, gastou US$ 18 mil com advogados, que a livraram da prisão, mas não de uma profunda depressão, que a deixou insone e inapetente por meses a fio. Documentos levantados pelo FBI, em 1977, revelaram que Cooper fora vítima de uma trama diabólica, codinome “Operation Freakout” (Operação piração), objetivando enlouquecê-la ou induzi-la ao suicídio. Falsas ameaças telefônicas e epistolares, atribuídas a Cooper, transformaram-na numa terrorista dispo
sta a explodir os consulados árabes localizados em Nova York e o escritório do então secretário de Estado americano, Henry Kissinger.
Amofinado com as pressões motivadas por seu ensaio sobre Hubbard, Bare-Faced Messiah (O Messias Descarado), Russell Miller viu-se forçado a publicá-lo primeiro na Inglaterra. Sua via-crúcis incluiu desde perseguições pelas ruas de Los Angeles, violação de correspondência e telefones grampeados a uma forjada acusação de homicídio em Londres.
Um detetive particular também bisbilhotou a família de Jon Atack. Autor de A Piece of Blue Sky, outra análise demolidora da Cientologia, Atack foi assediado durante pelo menos cinco anos. Em maio de 1989, a New Era Publications, editora dos cientologistas, exigiu, na Justiça, acesso ao manuscrito do livro de Atack antes de sua publicação, algo sem precedente na história do direito nos EUA. Por mais que o advogado de defesa invocasse a Primeira Emenda da Constituição, em julho daquele ano o juiz Louis L. Stanton obrigou a entrega do manuscrito aos censores da New Era, que lhe impuseram 121 cortes. Seis meses depois, o mesmo juiz proibiu a publicação de A Piece of Blue Sky, alegando “violação de direitos autorais”. O advogado de Atack apelou, e três juízes decidiram, por unanimidade, em favor da defesa, permitindo que o livro fosse publicado em sua forma original.
Aí o cerco apertou. Os cientologistas promoveram passeatas diante da casa do escritor e distribuíram panfletos entre os vizinhos, acusando Atack de ter-se envolvido com drogas. Leviandade da grossa. Atack sempre detestou drogas. E, com mais intensidade, os estupefacientes espirituais da Cientologia.
Todas essas histórias dariam um filme. Mas cadê coragem para produzi-lo? Michael Moore talvez topasse a parada. Se disposto a gozar Tom Cruise, poderia até intitulá-lo “Heil! Hubbard”.