Momentos históricos conturbados, repletos de crises e incertezas, propiciam um caldo de cultura favorável a fomentar “salvadores” que “antevêem” acontecimentos inevitáveis e se julgam substitutos dos deuses e norteadores da tecnologia e da história humanas. Esta seria, em sua visão, uma contrapartida necessária e fundamental para a purgação e expiação dos pecados e faltas cometidas, para o advento de tempos melhores, aguardados impacientemente.
No modelo de civilização judaico-cristão, o mais fortemente assimilado, a história do homem não é somente uma seqüência de fatos e conflitos que impulsionam os acontecimentos. Também está traçada por uma inteligência transcendente que tem um sentido misterioso, uma dimensão profética e espiritual que foge aos raciocínios comuns. São recorrentes a figura e a missão do Messias, a batalha do bem contra o mal e a idéia do juízo final. Organizada sobre a concepção do tempo histórico linear, a destruição torna-se imperativo inevitável ante a recusa e a incapacidade do ser humano de corrigir a sua marcha. Assim, se cria a idéia de que é fundamental começar tudo de novo, exterminando todo o mal, purificando os costumes e revitalizando a vida espiritual.
Jürgen Habermas, principal filósofo da segunda geração da Escola de Frankfurt, precognizadora da Teoria Crítica de Sociedade, considera que o princípio fundamental da moral é a universalidade. Para ele, as normas morais devem ser aceitas por todos os indivíduos inseridos na situação em que serão aplicadas. O princípio da universalidade exige ainda que as regras decorrentes de sua aplicação sejam aceitas sem coação por todos, sem relativismo. A teoria ética corresponde ao segundo uso da razão, que aparece na Ética de Aristóteles, segundo a qual o comportamento prático do cidadão deve se pautar pelo ideal coletivo ancorado na tradição, que, ao mesmo tempo, precisa respeitar as características de sua individualidade. Habermas valoriza o processo de autoconhecimento do indivíduo como forma de elaboração de um projeto de vida coerente com sua própria história.
Entretanto, o critério da universalidade, nas condições prevalecentes até o momento, fica apenas na intenção, pois não possui condições de realizar-se na prática. Nenhuma ação é válida para todos os seres humanos, até porque a sociedade carece de base ou infra-estrutura concretas para sua realização. Os abismos que existem entre os homens os separam de forma absoluta. Exemplos disso são o lugar que ocupam na produção sócio-econômica, as diferenças culturais, lingüísticas, religiosas, ideológicas etc. Não somos livres de fato, não possuímos autonomia para realizar atos morais porque não existem estruturas sociais morais que suportem nossas ações. Os milhares de seres humanos que morrem diariamente de fome no planeta poderiam ser facilmente saciados e salvos bastando para tanto que o princípio da universalidade fosse efetivamente aplicado e os alimentos, repartidos. Sabemos, no entanto, que não nos é permitido fazer isso – se o fizermos, estaremos violando um dos mais caros princípios constitucionais, o direito de propriedade.
Discutindo a própria ética — O problema não é de natureza estratégica ou instrumental, e sim ética, de não querer ou não conseguir encarar suas próprias incongruências. A eficiência, o sucesso, a competição, a acumulação de bens, o status e o controle sobre as pessoas seriam os verdadeiros valores do capitalismo. Para conviver com o paradoxo dessa dicotomia entre a ética capitalista – entre outras, como as das comunidades religiosas –, o capitalismo evita colocar em discussão sua própria ética, negando-se até como ideologia.
A Teoria Crítica, para Habermas, é um modo de reconhecer os objetivos de uma sociedade. Esses objetivos seriam o fim da coerção e a busca da autonomia por meio da razão, o fim da alienação por meio da harmonia consensual de interesses, e o fim da injustiça e da pobreza pela administração racional da justiça. É na busca da realização desses mesmos ideais que as seitas oferecem um ambiente coeso e estruturado em meio a um contexto difuso e fragmentado. Mas, sem reconhecer a falta de autonomia para realizar os atos morais, bem como de estruturas sociais morais que suportem tais ações, se degradam e se deterioram apelando para o irrazoável, para o aprofundamento da alienação, para a violência e para a irracionalidade, tornando bizarros seus comportamentos religiosos.
A despeito dos tantos e retumbantes fracassos pregressos, os movimentos escatológicos continuam desfrutando, neste início de século XXI, de um certo prestígio, ainda mais quando fazem menção ao incremento contínuo de catástrofes e tragédias. Ao que parece, não se esgotam na reiteração dos esquemas e das estruturas originais. Pelo contrário, há sempre um acréscimo de forças que os revivificam e proporcionam a força necessária para o recomeço e o arranque.
Sem chuva de enxofre — Destilando uma boa dose de sarcasmo, o pesquisador Lobo Câmara, em seu livro A Farsa da Nova Era: Nem Apocalipse, Nem Era de Aquário [Edição do autor, 2006], observa, com propriedade, que “já viramos o ano 2000, entramos no Terceiro Milênio e, como era de se esperar, não houve chuva de enxofre, cataclismos, Cristo não voltou, e muito menos a Era de Aquário dá sinais de vida. Todas as profecias que fixavam o fim do mundo ou o início de um novo para essa data foram para o vinagre. Tudo continua como antes, o que não impede que os crentes nas profecias do Apocalipse, das pirâmides, de Nostradamus e companhia ilimitada, continuem a acreditar nelas e postergá-las, fixando outras datas”.
O homem globalizado e “tecnizado” de hoje não está a salvo de ser enredado por profecias catastróficas semelhantes às do passado, já que mora em seu inconsciente o temor de um juízo universal – cujo anúncio todos os povos receberam em épocas bem determinadas por meio de profetas ou videntes devidamente “agraciados” para isso – e o indispensável impulso para a busca da salvação. Um sentimento indefinido de inquietação se apossa de um grande número de pessoas e nada consegue apaziguá-lo. Tudo parece caminhar cada vez mais rapidamente para o seu final, o qual só constituirá um início para aqueles que, ainda em tempo, mudarem seu modo de ser, adaptando-se finalmente às leis férreas da Criação e à harmonia desejada por Deus.
Porque o mundo é intrinsecamente mau, só restaria sua transformação mediante uma ação sobrenatural. Nada se pode fazer para melhorar ou redimir a ordem existente, mas os homens – ou melhor, alguns homens –, os verdadeiros cr
entes, poderão se safar quando a situação mudar por ordem de Deus. A resposta ao mundo consiste, então, em exigir não que se mudem as pessoas, e sim o mundo, e em antecipar tal acontecimento.
No início deste século, cada vez mais fragmentado, paranóico e confuso, a relativa tolerância aos cultos se arrefece, enquanto se tende a suspeitar que todos os invocadores de rituais obscuros e de técnicas de controle da mente planejam atentados terroristas e conspiram para derrubar governos e instituições e dominar o mundo. O pior é que essa paranóia, para confundir ainda mais as mentes, se confirma a cada dia, já que os danos que as seitas têm causado são de fato escatológicos.