Morreu nesta terça-feira (8) às 15h40 no Hospital das Clínicas da Unicamp, em Campinas, o físico César Lattes, vítima de uma parada cardíaca. O pesquisador, que confirmou a existência da partícula conhecida como Méson Pi e foi um dos líderes da geração de ouro que revolucionou o estudo da física no Brasil, tinha 80 anos. Amigos dizem que, ao longo dos últimos meses, ele já andava muito abatido, em crise depressiva, pela morte da mulher, Martha, no ano passado.
Cesare Mansueto Giulio Lattes nasceu em Curitiba, em 11 de julho de 1924, mas a intersecção de sua vida com o sucesso foi ocorrer bem longe dali: Inglaterra, 1947. O Laboratório H. H. Wills ocupava o quarto andar de um prédio monumental da Universidade de Bristol, no oeste do país. Lá, uma equipe liderada pelo físico Cecil Powell (1903-1969) tentava capturar os estilhaços produzidos, a dezenas de quilômetros de altitude, pelo choque de partículas ultraenergéticas — os chamados raios cósmicos — contra núcleos atômicos que formam o ar.
A esperança era que um fragmento ainda desconhecido da matéria fosse capturado ao imprimir sua trajetória em chapas fotográficas especiais — as emulsões nucleares. Entra em cena o físico brasileiro, então com 23 anos. Seu diferencial: entusiasmo, boa formação teórica e excelente treinamento na análise dessas emulsões ainda no Brasil. Lattes teve aulas na USP com um dos membros da equipe de Powell, o italiano Giuseppe Occhialini (1907-1993). Em Bristol, pediu que o fabricante das emulsões, a Kodak, colocasse um pouco mais do elemento químico boro na composição das chapas. Foi atendido. Deu algumas dessas novas emulsões a Occhialini, para que fossem expostas no Pic-du-Midi, França, onde seu ex-professor ia esquiar.
Nas alturas, é maior a probabilidade de se capturar os subprodutos da chuveirada de até bilhões de partículas causada pelo impacto inicial de um raio cósmico contra um núcleo atômico. Na volta, ao revelá-las, Occhialini descobriu as primeiras evidências de uma partícula que muitos grupos de pesquisa na Europa e nos Estados Unidos buscavam: o méson pi — ou píon. Virou a noite, escreveu um artigo sem conhecimento de Powell e o enviou para publicação. Essa insubordinação garantiu um lugar na história da física ao grupo de Bristol.
Lattes pediu permissão para expor emulsões em outro pico, o monte Chacaltaya, a 5.200 metros de altitude, nos Andes da Bolívia. Voltou ao Rio com as chapas já expostas. Revelou uma delas, e lá estavam mais e melhores evidências dos píons. Aproveitou para se casar com Martha, formada em matemática. Em seus muitos momentos de bom humor, Lattes aconselhava os jovens cientistas a se casarem com mulheres ricas, pois a ciência não dava e não dá dinheiro.
Fruto da paciência
Lattes voltou à Inglaterra com suas chapas de Chacaltaya. Calculou a massa do méson pi, um trabalho que exige a paciência de um monge tibetano, pois envolve contar milhares e milhares de pontinhos nas emulsões reveladas e publicou seus resultados. Esses e os primeiros artigos daquele ano de 1947 tiveram um grande impacto internacional. E o nome do Brasil estava lá. O méson pi havia sido previsto ainda em 1935 pelo físico japonês Hideki Yukawa (1907-1981). Descobrir essa partícula implicava explicar por que o núcleo dos átomos é estável, coeso — em outras palavras, explicar por que os prótons, que têm carga elétrica positiva, não se repelem e, com isso, explodem o núcleo.
No ano seguinte, Lattes estava em Berkeley, Califórnia. Lá, com seu colega norte-americano Eugene Gardner (1913-1950), fez outra grande descoberta graças ao seu olhar apurado: detectou, em pouco mais de uma semana de análises das emulsões, as trajetórias de píons produzidos no acelerador de partículas da Universidade da Califórnia. Segundo Occhialini, em texto para a Folha — 21/7/1984 —, só esse trabalho já garantiria a Lattes um lugar na história da física. Mas ele fez mais do que isso. Na década de 60, descobriu novos fenômenos, estabeleceu vários laboratórios no Brasil e no exterior e concretizou uma série de colaborações internacionais — a principal delas com o Japão.
Em entrevista feita nas comemorações de 50 anos da detecção do Méson Pi, Lattes foi perguntado se, caso tivesse chance, mudaria algo em sua vida. Foi enfático: “Não. Fiz o possível. Fui arrastado pela história”. Em sua resposta, pode-se ler o principal traço de sua personalidade: a humildade. Some-se a isso a bondade. Basta perguntar a quem teve o prazer de conviver, ainda que brevemente, com ele.
Herói da Era Nuclear
Certa vez, um jornalista brasileiro disse que Lattes era “o nosso herói da Era Nuclear” do pós-guerra, de uma época em que a física era a grande vedete das ciências. Caracterização bem feita. Foi o nome de Lattes e suas grandes descobertas que possibilitaram a fundação, em 1949, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro (RJ).
A reboque do CBPF, veio quase toda a estrutura político-administrativa da ciência no Brasil, do CNPq, pouco depois, ao almoxarifado de um centro de pesquisa de hoje, em algum canto esquecido pelas verbas governamentais. Apesar de toda a contribuição para o desenvolvimento da física nacional e mundial, Lattes não conseguiu abocanhar o prêmio mais cobiçado entre os cientistas: o Nobel. Em verdade, passou de raspão por ele em duas ocasiões.
Na primeira, Powell foi agraciado, em 1950, com o método de emulsão fotográfica que desenvolveu. Apesar da contribuição de Lattes para o avanço, ele não fez o suficiente para dividir a honraria com a dupla, interpretou a Academia Real de Ciências da Suécia. Na segunda, poderia ter ganho com Gardner, pela descoberta do Méson Pi em acelerador de partículas, mas o americano morreu cedo, e a academia não premia cientistas falecidos. César Lattes deixa quatro filhas e nove netos.