Desde a construção de Brasília (1956-1960), o Planalto Central vem atraindo uma profusão de religiões, seitas e correntes, principalmente aquelas vinculadas a gnoses orientais, terapias holísticas, temas ecológicos e cosmológicos, bem?ao espírito new age. Localizada no Paralelo 14 [Grande placa de cristal que passa por Machu Picchu, no Peru, e passa exatamente em cima da Chapada dos Veadeiros, em um lugar que se chama, não por acaso, Sertão Zen] e assentada sobre uma jazida de quartzo, a cidade goiana de Alto Paraíso, à 220 km de Brasília, com apenas oito mil habitantes, é considerada por muitos o coração da Terra ou mesmo o centro do universo. A rua principal conduz aos sítios e fazendas dos esotéricos, às cúpulas coloridas da Morada da Paz e aos inúmeros centros de meditação. O ecumenismo adotado por algumas ordens, como o Centro Terapêutico Metatron, coloca lado a lado Jesus Cristo, Maomé e Buda. Os que vivem nessas comunidades cultuam a natureza, a divindade dispersa em todas as coisas e buscam, não raro, contato com extraterrestres.
Dons proféticos — A mística do planalto remonta a uma figura ímpar dos anais da santidade do século XIX, o apóstolo São João Melchior Bosco [Em italiano Giovanni Melchior Bosco, popularmente conhecido como Dom Bosco, nascido em 1815 no Piemonte e falecido em Turim em 1888], que fundou a Ordem dos Salesianos em 1859. Canonizado pelo Papa Pio XI em 1934, Dom Bosco possuía dons proféticos que se conjugavam com sua sinceridade em não suprimir das mensagens as partes não convenientes aos homens de Roma.?Vários foram os sonhos proféticos de Dom Bosco, que, por diversas vezes, previu a morte de personalidades.
Em 1883, sonhou que estava viajando de trem pela América do Sul, passando pela Cordilheira dos Andes e pelo planalto. Foi quando ouviu uma voz dizendo que aquele lugar possuía minerais em abundância. Esse mito foi amplamente divulgado e usado pelos próprios idealizadores e fundadores de Brasília, que trataram de revestir de significado religioso a dispendiosa e arriscada empreitada: “E entre os paralelos 15º e 20º Sul havia um leito muito largo e extenso que partia de um ponto onde se formava um lago. Quando escavarem as minas escondidas no meio desses montes, aparecerá aqui a grande civilização, a Terra Prometida de onde emana o leite e o mel”.
Geofísicos confirmam a antiguidade daquelas terras, formadas por placas tectônicas que uniram os continentes americano e africano. Daí a hipótese de o planalto ter sido a primeira porção continental dos oceanos, constituindo-se no berço da humanidade. A presença de cristal de quartzo em profusão no subsolo criaria, para os esotéricos, um campo magnético favorável aos contatos psíquicos com os mundos paralelos, pois a freqüência vibratória do mineral purificaria os corpos energéticos e facilitaria a integração e o desenvolvimento espiritual, em sintonia com a energia do cosmos. A camada de cristal atrairia ainda os extraterrestres, ou pelo menos os ufólogos espiritualistas esotéricos, para os quais os eleitos eram “chamados” para ajudar na regeneração do planeta, já em curso. As visitas de discos voadores e os contatos imediatos com ETs na região tiveram o auge entre os anos 60 e 80 e foram amplamente divulgados pela imprensa e nos livros do militar e contatado Alfredo Moacir Uchôa (1906-1996), conhecido como o “General das Estrelas”.
Em seu livro Roteiro Mágico de Brasília [Codeplan, 1986], o jornalista Dioclécio Luz lista uma profusão de seitas que se proliferavam na “Capital do Terceiro Milênio” à época: Renascer, Grande Fraternidade Universal, Augusta Grande Fraternidade Universal, Nova Acrópole, Universidade Holística, Sociedade Internacional de Meditação, Centro de Estudos de Antropologia Gnóstica, Eubiose, Sociedade Teosófica, A Grande Pirâmide do Lago, Rosa Cruz Áurea, Perfeita Liberdade, Cidade da Paz, Movimento para Consciência de Krishna, Cadeia Mental Universal, Ordem dos 49, Clube Naturalista de Preservação da Vida, Himalaya Consultoria Vivencial, Associação Brasileira de Comunidades Alternativas (Abrasca), Fraternidade da Cruz e do Lótus etc. Luz pontuou que, se por um lado divergiam em questões acidentais, por outro convergiam para a mesma cosmovisão.
Vale do Amanhecer — À 42 km de Brasília, na cidade de Planaltina, a paraibana Neiva Chaves Zelaya, a Tia Neiva, fundou em 1969 a comunidade do Vale do Amanhecer, a fim de “preparar os homens para o terceiro milênio”. Informações desconexas definiam aquela atraente mulher de meia-idade, com longos e negros cabelos laqueados, sempre trajada com túnicas vistosas, como que sempre pronta para um grande evento. Além disso, era clarividente, sacerdotisa e autoridade máxima do Vale, fundadora da UESB (União Espiritualista Seta Branca), viúva, mãe de quatro filhos. Neiva foi a primeira mulher no Brasil a obter uma licença de motorista profissional. Era assessorada por Mário Sassi, ex-funcionário da reitoria da Universidade de Brasília (UnB), chamado de “O Intelectual”. Era ele que explicava aos interessados as viagens no corpo etéreo de Neiva e traduzia suas mensagens para uma ritualista exótica. Juntos, lideravam os 15 mil médiuns que trabalhavam no Vale, realizando rituais de cura e de desenvolvimento mediúnico, cultivando a terra e prestando assistência social aos necessitados.
Ciclos milenares — Tia Neiva contava assim como começaram suas “visões”: “Em 1969, quando ainda trabalhava como motorista de caminhão, profissão que herdei do meu falecido marido, estava num posto esperando terminar a lavagem do caminhão quando, sobre a cabeça de um homem que estava num ponto de ônibus, vi uma mulherzinha de vestido branco com bolas vermelhas, que apontava em direção à esquina onde deveria surgir o coletivo. Quando olhei, vi claramente a cena do ônibus lotado tombado numa curva, causando a morte de quatro pessoas. Então, contei a minha visão para todo mundo que estava ali, mas ninguém deu muita importância. Todos pensavam que eu era maluca. Mas pouco depois apareceu o ônibus, cheio, já andando meio de lado. Ele passou reto pelo ponto. Alguns minutos depois, vieram avisar que ele tinha tombado, matando gente, exatamente como eu tinha viso. Pensei: Ainda bem que aconteceu, senão eu ia pensar que estava louca mesmo”.
A doutrina de Tia Neiva misturava cristianismo, espiritismo, cultos afro-brasileiros e mitologias maias, incas, astecas, gregas, egípcias e romanas, constituindo um dos maiores exemplos do sincretismo religioso brasileiro. Dividia o tempo histórico em ciclos milenares, cujo encerramento se daria por intervenção de um personagem sagrado – no caso do segundo milênio, o cacique Pai Seta Branca –, e o espaço físico do Vale em áreas sagradas e profanas, com seus diversos templos, a saber: Templo de Pedra, Turigano, Estrela de Neru, Solar dos Médiuns, Estrela Candente e Lago das Princesas. Segundo Tia Neiva, a Terra é um planeta de expiação entre os mundos inferiores. Já o astral
superior, seria o local para onde iriam os adeptos após o “desencarne”. Para ela, o espaço do Vale comporta-se como um centro de ruptura de níveis: a abertura para o alto (o divino) ou para baixo (regiões inferiores), onde os três níveis cósmicos – Terra, Céu e regiões inferiores – se fundem.