Enquanto o mundo experimentaria os fenômenos marianos de Fátima, Portugal, somente no ano de 1917, do outro lado do Atlântico, a história da Nossa Senhora Aparecida surgiria nas terras brasileiras, há exatos dois séculos antes dos comprovados fenômenos lusitanos. O fato brasileiro, em realidade, não pode ser visto como um fenômeno e – conforme os seus crentes – tampouco como uma casualidade. Os desígnios de Aparecida remontam ao Brasil escravo, segundo relatos históricos datados de meados de 1717, sobre o aparecimento de uma imagem de madeira que posteriormente passou a ser cultuada por milhões de fiéis no país. O acontecimento foi de grande impacto na religiosidade e na cultura brasileira, pois mesmo se tratando de uma escultura cunhada em madeira, encontrada sob as águas de um rio, se tornou símbolo de amparo do sofrido povo brasileiro. A fé em Nossa Senhora Aparecida atravessou todas as latitudes do imenso Brasil, vindo a santa de madeira a cair numa simpatia popular praticamente unânime àquela época, quando a Igreja Católica ainda possuía um séquito mais carismático e fervoroso que na atualidade.
No entanto, se ressalta que ainda nos dias atuais a Virgem goza da simpatia e devoção da maior parte do povo brasileiro. A história de Aparecida se inicia em 1717, com a viagem do conde de Assumar, dom Pedro de Almeida e Portugal, à época governador das províncias de São Paulo e Minas Gerais. O conde estaria de passagem pela Vila de Guaratinguetá, interior paulista, com destino a Vila Rica, atualmente município de Ouro Preto (MG). Para bem alimentar a autoridade viajante quando de sua passagem na região, a Câmara de Guaratinguetá contratou os pescadores Domingos Garcia, Filipe Pedroso e João Alves para buscar peixes no Rio Paraíba. Assim, os três pescadores desceram aquele rio. A princípio, a pescaria se fazia infrutífera, até que chegaram ao Porto Itaguaçu. Naquele local, Alves, ao lançar sua rede nas águas, recolheu o corpo esculpido em madeira de uma mulher, que afirmaram se tratar de Nossa Senhora da Conceição, porém não tinha cabeça. Mas ao jogar novamente a rede, o pescador apanhou a parte que faltava. Narra a história que doravante o achado, a pesca logrou êxito e os peixes caíram em abundância nas redes daqueles pescadores paulistas.
Devoção à imagem — Eles retornaram com a imagem, juntaram as duas peças em apenas uma e difundiram aquela história entre o povo, chamando a atenção da Igreja Católica para o achado. Durante 15 anos seguidos a escultura ficou conhecida como sendo de Nossa Senhora “Aparecida”, assim denominada por ter aparecido das águas, permanecendo sob a guarda da família de Pedroso, que a levou para casa, onde a vizinhança criou o costume de se reunir para rezar em torno da mesma. A tradição religiosa católica mais uma vez abraçou um caso mariano e estabeleceu a ele a versão de sua igreja e, através da santa de Aparecida, havia acentuado a fé dos súditos cristãos. A imagem e o caso foram reconhecidos pelo Vaticano como fenômenos de natureza divina. De forma crescente e constante a história continuou se propagando por outros lugares, passando a atrair o interesse crescente de mais e mais pessoas. Com isso, a devoção foi se elevando em meio às graças alcançadas por aqueles fiéis que rezavam diante daquela imagem.
Dessa forma, ainda naquela época – onde havia poucos meios de comunicação –, a fama dos poderes de Nossa Senhora Aparecida foi rompendo fronteiras nacionais após ter se espalhado por todas as regiões do Brasil. A história dita que em 1734 o Vigário de Guaratinguetá construiu uma capela no alto do Morro dos Coqueiros, aberta à visitação pública no dia 26 de julho de 1745. Assustadoramente, a quantidade de fiéis aumentava e para atender a essa demanda foi iniciada em 1834 a construção de uma igreja maior, a atual Basílica Velha de Aparecida. O local ficou conhecido como “Aparecida do Norte” e recebeu no ano de 1894 um grupo de padres e irmãos católicos da Congregação dos Missionários Redentoristas, treinados para atender aos romeiros que “acorriam-se aos pés da Virgem Maria para rezar com a Senhora ‘aparecida das águas’”, conforme narra o Santuário Nacional.
Em 08 de setembro de 1904 a imagem de Nossa Senhora Aparecida foi coroada solenemente pelo bispo católico dom José Camargo Barros e no dia 29 de abril de 1908 aquela igreja recebeu o título de Basílica Menor. Em 17 de dezembro de 1928 a vila que se formara ao redor da igreja no alto do Morro dos Coqueiros se tornou oficialmente município autônomo de Aparecida do Norte. Em 1929, por determinação do Papa Pio XI, a Nossa Senhora foi proclamada como “Rainha do Brasil e sua padroeira oficial”. Após mais de duas décadas, a primeira Basílica se tornou pequena e por iniciativa dos missionários redentoristas e dos bispos católicos teve início em 11 de novembro de 1955 a construção de uma outra igreja, a atual Basílica Nova. Quando da visita do Papa João Paulo II ao Brasil em 1980, a mesma foi consagrada pela santidade clerical e recebeu o título de Basílica Menor. No ano de 1984, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) declarou oficialmente a Basílica de Aparecida como Santuário Nacional e maior santuário mariano do mundo.
Santa negra — Com o passar dos tempos a cidade paulista se tornou então o grande centro da religiosidade brasileira, abrigando também uma verdadeira zona mercantilista montada em torno da santa, onde são comercializadas imagens, objetos de adoração e utensílios temáticos, fato esse que veio potencializar o turismo e a economia de toda aquela região. O estranho surgimento da imagem em Aparecida, pescada em dois lances de rede, sugere aos seus pesquisadores diversas hipóteses, incluindo àquela de que – como crê a Igreja Católica – alguma forma de inteligência consciente ou “santa” estaria submersa no rio, repassando aos pescadores aquele objeto de arte dividido em duas partes. Essa forma seria uma espécie de contato através de um sinal: o envio aos homens de uma imagem de madeira, que mais tarde seria cultuada de forma a acentuar e “sofisticar” a fé das pessoas daquele tempo. Mais que um simples artefato artístico, a representação estaria destinada a se tornar um objeto de culto da fé e um ícone catalisador dos anseios e sofrimentos de toda uma nação. Cabe-nos registrar que, durante o processo secular de difusão da Nossa Senhora Aparecida pelo mundo se fizeram algumas distorções dos fatos, além de determinadas mitificações que surgiram. Dentre elas se encontra a sugestão de que a cor d
a pele da Senhora Aparecida, a santa brasileira, fosse vista como da raça negra, criando, assim, a primeira entidade de cútis escura da Igreja Católica.
Uma imagem de madeira ‘aparecida das águas’ viria influenciar a fé e a cultura de um povo, tornando-se sua padroeira nacional
— Pepe Chaves
No entanto, essa afirmação tão propagada e dessa forma absorvida pela maioria da sociedade se faz por meio de uma aparição não física – a exemplo das demais manifestações marianas –, mas, sim, através de constatação do aspecto de uma imagem cunhada em madeira, não se sabendo realmente se existiu, no campo físico ou espiritual, uma mulher semelhante a essa imagem e, muito menos, qual seria a cor de sua pele. É necessário esclarecer que esse conceito se propagou popularmente pelo fato da pigmentação escura apresentada pela imagem da Senhora Aparecida. Na verdade, trata-se do efeito natural da própria madeira usada para se esculpir aquela estátua.