Em 30 de dezembro de 1903, moradores dos bairros Tijuca, Andaraí e Rio Comprido, no Rio de Janeiro, testemunharam o que os jornais noticiaram como a queda de um meteorito. Décadas mais tarde, os adeptos da seita Cultura Racional “retificaram” esse “erro da imprensa” esclarecendo que “tratou-se, na verdade, de um corpo de massa cósmica que ao longe parecia uma estrela, e que, depois de penetrar paredes, entrou no corpo de um bebê que nascia naquele instante na rua Barão de Iguatemi”.
Afora a atribuição desse fato, nada em Manoel Jacintho Coelho indicava uma natureza excepcional até que, aos 32 anos de idade, o fundidor e funcionário do Ministério das Relações Exteriores, desquitado, pai de oito filhos e proprietário de um centro espírita, “desencantou”. Ele recebeu uma comunicação cósmica do “Mundo Racional” que o habilitou a redigir os fundamentos da seita e uma série de mensagens reunidas na obra Universo em Desencanto. “Quando nos propomos a falar sobre Cultura Racional, não podemos nos esquecer de que Manoel Jacintho Coelho é Cultura Racional e Cultura Racional é Manoel Jacintho Coelho. Ambos se confundem e se entrelaçam, fazem parte do uno e indivisível”, enunciam os seguidores.
Um vulcão extinto— A Cultura Racional foi fundada em 1935, quando o Rio de Janeiro era o antigo Distrito Federal. Surgiu na Rua Lopes da Cruz 89, Méier, num centro espírita denominado Tenda Espírita Francisco de Assis, fechado logo em seguida porque “havia chegado ao mundo uma Nova Era: a Era do Racional”. Coelho montou então uma comunidade num sítio em Vila Cava, no município de Nova Iguaçu, zona norte do estado, tida pelos seguidores como a Nova Jerusalém. “Manoel Jacintho Coelho mora numa localidade que já foi uma civilização extinta, cujo nome era Jesus Vem. Foi no sopé da Serra dos Caboclos, onde existem ruínas de uma civilização antiga, com igrejas e fazendas. E onde existe também um vulcão morto. Num livro antigo da história do Rio, há descrição de toda a história do Estado, onde se conta a data da erupção desse vulcão. É nessa localidade que está situada a residência simbólica dos habitantes do Mundo Racional, um marco histórico da Cultura Racional”.
O vulcão fica na extremidade norte da Serra de Madureira e foi descoberto pelos geólogos Victor Klein e André Calixto de Oliveira, em 1975, quando mapeavam o antigo Estado da Guanabara. O acesso é difícil e após 2,5 km de caminhadas pela serra, até a Pedra da Contenda, chega-se ao vulcão, cuja cratera mede aproximadamente 500 m de diâmetro. A Serra de Madureira, à 15 km do centro de Nova Iguaçu, possui um vale com mata atlântica, a Cachoeira Véu da Noiva, a Lagoa Azul e uma antiga casa de fazenda.
Equiparado a Cristo — O mundo teria ingressado no Terceiro Milênio em 1935, ano em que Manoel Jacintho Coelho entrou em conúbio com os do Mundo Racional: “Assim, no primeiro milênio a natureza sintonizava com a energia magnética desenvolvendo a imaginação; no segundo milênio com a energia elétrica desenvolvendo o pensamento e agora entramos no terceiro milênio, onde a sintonização é feita por meio de Energia Racional desenvolvendo o raciocínio… As energias elétrica e magnética funcionaram em conjunto durante dois milênios”.
Descrito como “um homem humilde dos mais humildes, simples dos mais simples e tolerante dos mais tolerantes, sem vaidades e sem ambições, julga a matéria como ela é, somente pensa no bem de todos e somente trabalha noite e dia para a salvação de todos. Como aí está, o conhecimento prova com lógica definida e base de onde todos vieram, para onde todos vão e como vão”. Não parecia tão humilde, simples, tolerante, sem vaidades e ambições assim, pois reivindicava para si importância magnânima, equiparando-se a um santo ou mesmo a um deus todo-poderoso, fazendo questão que o adulassem e o adorassem como “a muito mais que um pai”, “o Pai eterno que está aqui para mostrar luz”, “um iluminado pelo Mundo Racional”, “o único ser desta galáxia terrestre que nasceu com o raciocínio plenamente desenvolvido e com a missão de trazer à humanidade o conhecimento de si mesma, de todos e de tudo, através do desenvolvimento do raciocínio”.
Figura mítica e reverenciada — Equiparado a Cristo, que em Isaías 9:6 é chamado de “Príncipe da Paz”, dele se dizia: “Carioca, com a cor dos nativos, a cor de bronze, a cor da união de todas as raças, que veio trazer a paz, o amor, a fraternidade e a concórdia entre todos, universalmente”. Da mesma forma como na Bíblia o surgimento da estrela indicaria o nascimento de Jesus em Belém (Mateus 2:1-11), a queda do meteorito indicaria o nascimento de Manoel no Rio de Janeiro. Não por acaso, portanto, seria batizado como Manoel, corruptela de Emmanuel, nome aplicado somente a Jesus (Isaías 7:14 e Mateus 1:21-23) e que significa “Deus está na Terra” ou “O Salvador”.
Se a figura mítica de Jesus é convenientemente explorada ao máximo de seus estertores, a histórico-religiosa é reduzida a “um filósofo de seu tempo, igual a uma infinidade de filósofos que existiram no nosso mundo, como Buda, como Alá, como Maomé, como Jeová e outros tantos. Cada um criou a sua filosofia, diferentes umas das outras. Serviu para a época que foi criada. Na época em que todos eram guiados pelo temor. Nessa época o povo não tinha instrução”.
Dirigindo-se a um grupo de turistas que o visitava em sua residência, Coelho entregou-lhes uma mensagem para o ano de 1984 nos seguintes termos: “Agora que vieram fazendo todo o sacrifício, enfrentando tudo, para homenagear o ‘Verdadeiro Deus’, todos irão melhorar de situação e de saúde e terão sua recompensa pelo esforço e sacrifício feitos durante essas longas viagens. Serão beneficiados e protegidos pelo Verdadeiro Deus, que é o Racional Superior que vos fala”.
Racional superior — Embora se diga “ecumênica e fraternal”, “em favor de todos e de tudo” e negando o rótulo de irmandade “quer seja católica, espírita, evangélica, judia, muçulmana, budista ou materialista”, e que “não precisa de igreja, sinagoga, mesquita ou casa de p
regação”, a Cultura Racional não resiste em recitar freqüentemente o seu credo exclusivista: “A Cultura Racional é a verdade das verdades”: “Logo recebi a prova luminosa de que a Cultura Racional é o caminho da verdade das verdades, o único capaz de trazer libertação a todos os seres da terra e do espaço”. Vai mais além ao proclamar-se não como “uma religião”, mas como “A Religião” no sentido alto do termo: “Já se disse uma vez: a palavra religião vem de religar, reunir, repor, recolocar o homem à Força Suprema. Nesse sentido, talvez se possa entender a Cultura Racional não como uma religião particular (com clero particular, com uma liturgia); não é. Pode ser A Religião, o Conhecimento que religa o homem à natureza; reúne o homem à sua origem, tendo em vista o seu fim”.
E arremata, numa grande síntese antidialética: “Não existem duas verdades. A verdade é uma só: É Racional”. Universo em Desencanto é uma alentada coleção de livros composta por nada menos do que 1.006 volumes escritos entre 04 de outubro de 1935 e 04 de junho de 1988 por um “Extraterreno, o Racional Superior”, através de Manoel Jacintho Coelho, seu “representante na Terra”. Impressa na Racional-Gráfica Editora, no bairro de Belford Roxo, Rio de Janeiro, essa insofismável “bíblia” para os adeptos era distribuída e vendida na rede de livrarias da Cultura Racional espalhadas em várias cidades do Brasil, bem como por todos os países da América Latina – com destaques para a Argentina e a República Dominicana – e em todas as nações do mundo. Também era vendida pelo correio, via reembolso postal. Ao que parece essa era a principal fonte de receitas da seita, o sustentáculo de suas atividades.
O vocábulo “desencanto”, no entendimento dos fiéis, não teria o sentido corrente de “desfazer ou quebrar o encanto ou encantamento, causar decepção ou desiludir” e sim, numa mostra de simplismo e reducionismo absurdos: “Cada um no seu canto, cada um no seu lugar. A matéria no seu canto, no seu lugar e o corpo de Energia Racional no seu lugar – o Mundo Racional. Unir todos em seu lugar verdadeiro; o corpo de matéria no seu lugar – o mundo de matéria e o corpo de Energia Racional no seu lugar verdadeiro – o Mundo Racional. Então se diz: Universo em Desencanto: cada um no seu canto, cada um no seu lugar”.
Entidades espíritas — A obra, de origem mediúnica (ou espírita), pretende narrar aos leitores a origem da Terra, as etapas de sua formação ou degenerescência e propor remédio para todos os males presentes e futuros, dando solução a tudo e a todos os problemas. Justificamos a asserção de que a obra é de origem espírita por ter seu fundamento em uma sede espírita e por passagens que claramente atestam isso: “O Espiritismo para a Cultura Racional é o primeiro passo para se encontrar o nosso verdadeiro Mundo de Origem: o Mundo Racional. É o primeiro passo para o encontro com a individualidade que se encontrava perdida nesse mundo, que ninguém sabia dizer o porquê dele. De forma que o espiritismo foi uma das coisas de maior grandiosidade e que no seu princípio, tinha mesmo que existir suas falhas, porque ninguém sabia definir do princípio ao fim o que eram os espíritos, por tudo se encontrar em densos mistérios, que daí deu margem a uma infinidade de modos diferentes de praticar o espiritismo”.
“A umbanda não parou – aqui está a continuação da umbanda e de todo o mundo espiritual. […] Esse conhecimento de Cultura Racional nasceu da umbanda. É a continuação da umbanda e de todo o espiritismo filosófico e científico e de toda a ciência filosófica e científica […] Foi o primeiro passo para se encontrar a meta final, que é o princípio e o fim de tudo e da vida humana e por isso o espiritismo não parou”.
“Nos outros centros espíritas há Cultura Racional. No centro espírita Marinheiro, em São Paulo, foi nomeado pelos Orixás o senhor Diomar como presidente do centro e Guia Espiritual de Umbanda… Então nomearam o senhor Diomar como Guia Espiritual de exu, porque é uma pessoa que está mais ou menos ligada à Energia Cósmica, tendo em mãos o livro que faz a ligação com o Mundo Racional, para encaminhar a humanidade ao encontro de seus irmãos de origem, o Mundo Racional”.
Ainda que procurem encobrir e adulterar o título das entidades com as quais se comunicam, esses seres do Mundo Racional não são outros senão os mesmos a quem os espíritas dão o nome de espíritos dos mortos ou desencarnados e os umbandistas de entidades, caboclos, guias, exus etc. E ainda que a maior difusão da obra se desse justamente em centros espíritas e terreiros de umbanda, e admitissem que Coelho “era um ‘aparelho” [Corpo] que se comunicava com o mundo racional de onde todos nós viemos, os adeptos não aceitavam ser confundidos com os dessa religião. Diziam que “o senhor Manoel Jacintho Coelho nunca foi um médium. O senhor Manoel Jacintho Coelho é um habitante do Mundo Racional em missão aqui na Terra, para poder ditar a obra Universo em Desencanto”.
Porque os seres terrenos têm que se desenvolver e se preparar para entendê-los, por isso aí estão a cultura extracósmica e os habitantes do Mundo Racional. Como é que você pode entender um habitante de um mundo diferente do seu, de vida diferente da sua, que é habitante do mundo inferior? A missão deles é fazer a propaganda da existência do Mundo Racional. Falarão mais adiante, depois do reconhecimento mundial da cultura deles. É o início preparatório para ligar todos ao mundo deles, que é o nosso também
— Manoel Jacintho Coelho
Mundo Racional — “Nós somos habitantes do Mundo Racional envolvidos num ciclo de transformação e deformação energética com a conseqüente perda da condição Original Racional. Nossa consciência atual se achou nesta condição de animal Racional, sem saber o porquê, nem para quê. O senhor Manoel Jacintho Coelho também é um habitante do Mundo Racional, só que não faz parte desta deformação material-espiritual a que pertencemos. Só um ser de Energia Racional materializado como animal Racional para permitir que o conhecimento Racional, que é Energia Racional, viesse a esse mundo de energias deformadas elétrica e magneticamente”.
A ligação com o Mundo Racional, conforme se explicava, seria feita por meio da glândula pineal ou hipófise, responsável pelo raciocínio e que se encontrava paralisada pela energia deformada (elétrica e magnética): “A glândula pineal, quando dese
nvolvida pela energia própria do desenvolvimento que é a Energia Racional, defende a criatura de qualquer categoria de enfermidade, pois gera no sangue uma espécie definida de leucócitos ou anticorpos que torna impossível a vida dos agentes patogênicos. A energia racional elimina a causa dos males, imunizando a pessoa dos efeitos negativos das energias elétrica e magnética, tornando a criatura que a desenvolveu apta a se comunicar com qualquer pessoa em qualquer lugar ou distância sem uso de palavras”.
Enquanto os pentecostais falavam em salvação, a Cultura Racional falava em Imunização Racional, ou seja, “ser imunizado pela Energia Racional do seu verdadeiro Mundo de Origem, ficando imune da energia do animal irracional, a energia elétrica e magnética, pois a energia do animal de Origem Racional é a Energia Racional, do verdadeiro ser natural de Racional. E a energia elétrica e magnética é a energia do animal irracional, à qual o animal de Origem Racional estava ligado e por estar ligado estava em curto, por estar desligado da energia do seu verdadeiro natural”. Para não despencar na escala descendente, a solução era a imunização racional, e para chegar a ela, só havia uma solução: a leitura freqüente dos respectivos livros. Só daí o homem poderia evoluir, escapando do processo de “involução” ou “retrocesso da humanidade às escalas da degradação”: “Aí no mundo vivem, com as entranhas fracas de tanto pensar e no momento que lêem, o pensamento encontra-se tão abatido, que acabam de ler e nada sabem explicar a contento, precisando ler constantemente para ir refazendo a saúde, fortalecendo a mente e guardando o que lêem para terem em si o saber e o poder de esclarecer os demais”.
Comunhão com os ETs — A Cultura Racional, tal como a Cientologia, simplesmente substituiu o plano de salvação apontado na Bíblia pelo desenvolvimento do cérebro ou do raciocínio: “É só desenvolvendo o raciocínio que a humanidade pode entrar em contato com esses habitantes do mundo racional, que muitos tratam de discos voadores, porque a fase natural da natureza é a fase racional. E nesses livros, que são deles, todos entrarão em contato com eles pelo desenvolvimento do raciocínio. Lendo e relendo o raciocínio é o que basta para desenvolver o raciocínio”.
Adjudicando-se em profunda intimidade e em perfeita comunhão com os discos voadores e seres extraterrestres, nos livros, folhetos, programas de rádio e no Jornal Racional as citações a eles eram comuns: “Bem-aventurados estes UFOs, Perfeitas Energias do Consciente Supremo, cuja pureza não fará pairar nenhuma dúvida sobre o resgate das sementes deformadas, pois é chegado o tempo de curar a lesão responsável pela amnésia e a inconsciência dos entes para com sua base de origem”. Sebastião Vargas Filho, um dos seguidores, explicava os discos voadores como “sendo habitantes do Mundo Racional, que se apresentam à humanidade como ‘discos voadores’ para chamar sua atenção e fazer com que ela compreenda a existência de um outro mundo habitado. Por serem habitantes de um mundo superior, eles se apresentariam como discos e corpos de energia luminosa”.
Manoel Jacintho Coelho dizia-se em contato permanente com os discos voadores e com o mundo de onde provinham, isto é, o “Mundo Racional”. Na fantasia de Coelho, um habitante do mundo racional é que se transformava em disco voador para chamar a atenção da humanidade para a mudança da fase da natureza: de animal racional para a fase racional. Eles se apresentavam de todos os tamanhos, de todas as maneiras, de todos os feitios e também como discos voadores. Eles apareciam para demonstrar que existiam outras formas de vida, mas, de modo a não assustar as pessoas, escolhiam locais ermos e pouco povoados: “Porque os seres terrenos têm que se desenvolver e se preparar para entendê-los, por isso aí está a cultura extracósmica e os habitantes do Mundo Racional. Como é que você pode entender um habitante de um outro mundo diferente, de vida diferente da sua, que é habitante do mundo inferior? A missão deles é fazer a propaganda da existência do Mundo Racional; falarão mais adiante, depois do reconhecimento mundial da cultura deles. É o início preparatório para ligar todos ao mundo deles, que é o nosso também”.
Origem da humanidade — A origem da humanidade é descrita de modo bastante irracional e infantil nos livros, senão vejamos: “Depois que os Racionais entraram pelo pedaço que não estava pronto para entrar em progresso, fizeram o uso da vontade pela vontade ser livre; esse foi o primeiro passo. Vieram descendo e perdendo as virtudes; com o tempo se extinguiram em cima da planície gomosa e outros tantos se extinguiram em cima da resina e daí começaram a nascer do chão, o princípio da deformação”.
A humanidade “surgiu na primeira fase do início da formação desse mundo, que era uma Fase Cósmica. Com o decorrer das mudanças de eternidade, é que vieram se modificando, se transformando, se degenerando de acordo com as modificações das eternidades. Cada eternidade era uma forma e uma mudança da natureza, até que com o decorrer das eternidades a deformação e degeneração chegou a este ponto. Passaram por todos esses transes, em 21 eternidades. Quando se diz que viemos descendo de classes e já fomos habitantes do Mundo Racional, depois do Astral Superior, depois do Astral Inferior, cada uma dessas classes foram sendo formadas conforme ia progredindo a deformação”.
“Antes da quarta eternidade éramos Racionais que vinham perdendo as virtudes e viemos criando esses mundos: Astral Superior depois, deformando mais, formando o Astral Inferior, deformando mais até ficarmos nas condições de matéria. Uns tantos se extinguiram em cima da resina e da planície e outros tantos ficaram no Astral Superior, outros tantos ficaram no Astral Inferior, que se extinguiram na energia elétrica e magnética que são os corpos, habitantes do Astral Inferior”. Os surgimentos da água, do homem e da mulher na Terra não poderiam ser explicados de maneira mais pueril: “Racionais que vieram perdendo suas virtudes, foram se reunindo e se transformando em um pequenino foco. Esse foco, com o tempo, foi aos poucos aumentando e esquentando, dando origem ao Sol. E esses corpos que vieram perdendo suas virtudes com o tempo, perderam-na totalmente e uns tantos se extinguiram em cima da planície. Outros tantos, em cima da resina da planície, de onde esse foco de luz foi esquentando. E dessa
planície começou a sair uma resina que, torrando e virando cinza, deu origem à Terra e amoleceu a planície que, com o tempo, ficou gomosa e virou líquido, dando origem à água. E dos corpos que se extinguiram em cima da planície que virou goma, originou-se o sexo masculino. Dos que se extinguiram em cima da resina, originou-se o sexo feminino. Por isso, a mulher é o micróbio da Terra, que nasceu para produzir como a Terra produz, e o homem para plantar a semente. Está aí como nasceu a mulher e o homem”.
Marqueteiros da fé — Os adeptos da seita eram pessoas aparentemente calmas e tranqüilas que afirmavam ter encontrado a paz interior, a energia e os caminhos da fraternidade entre todos. Usavam roupagem toda branca (calça e camiseta) com o símbolo do grupo (um portal) e postavam-se nas esquinas e praças dos centros urbanos com cavaletes expondo gravuras repletas de discos voadores que explicavam a origem e evolução do mundo reproduzidas dos livros Universo em Desencanto.
Andavam normalmente em grupos, com instrumentos musicais, denominando-se caravaneiros. Dezenas de grupos de jovens se reuniam para estudar os livros e para tocar nas chamadas “bandas racionais”. A Banda Racional de São Paulo, por exemplo, era formada por cerca de 230 pessoas, a maioria jovens, que se apresentavam mais aos finais de semana, em feriados nacionais, em festas folclóricas e, é claro, em convenções da Cultura Racional para difundir, por meio de músicas e de seus uniformes, o legado deixado pelo “mestre” Manoel.
Para justificar a roupa branca que usavam e o livro que divulgavam, citavam – nas raras vezes em que a ela recorriam – a Bíblia, o livro de Apocalipse 22:14, só que de modo truncado: “Felizes daqueles que estão lavando os seus mantos para vestirem-se de branco e terem a felicidade de entrar pela porta da cidade… com palmas nas mãos e um livro…” A transcrição original do versículo seria: “Bem-aventurados aqueles que lavam suas vestiduras no sangue do Cordeiro, para que tenham direito à árvore da vida, e possam entrar na cidade pelas portas”.
O que se configurava apenas como um grande compêndio de proposições esdrúxulas e nonsense, eivado de erros gramaticais e de concordância, conquistou, ao longo das décadas, corações e mentes de uma variada gama de pessoas, a maioria oriunda das camadas médias urbanas. Tal como na Cientologia, aliás, bem antes dela, figuras notórias e artistas eram destacados para fins de propaganda. Um dos tópicos da “bíblia” Universo em Desencanto, numa lição aos “marqueteiros da fé”, é “o dever de fazer propaganda deste conhecimento”: “Anunciar para todos o que todos estão necessitando e que vêm implorando há muito. Então, é o dever de todos que têm convicção da cultura da Divina Providência tomar providências, porque já é considerado um representante do Mundo Racional. Já é considerado um salvador, para salvar os demais, anunciando de todas as maneiras e formas, para que todos tomem conhecimento das providências da Divina Providência”.
Tim Maia Racional — Atores como Procópio Ferreira e Lady Francisco e músicos como Nelson Gonçalves, Jackson do Pandeiro, João Roberto Kelly, Vicente de Mattos, Roberto do grupo Golden Boys, Roberto Simonal – irmão de Wilson Simonal –, Orlando Dias etc, declararam-se leitores ávidos dos livros Universo em Desencanto. Dos artistas que aderiram à seita, o mais emblemático e referenciado é o inventor da soul music e do funk tipicamente brasileiros, o cantor e compositor Tim Maia (1942-1998), “O Síndico”. Em 1970 ele lançou o seu disco de estréia pela PolyGram, puxado pelo hit “Primavera”, que ficou 24 semanas em primeiro lugar nas paradas e vendeu mais de 200 mil cópias, um recorde à época.
Vieram outros discos bem-sucedidos, até que, por causa do livro Universo em Desencanto que lhe foi dado por Tibério Gaspar, Tim, que já gostava de Ufologia, freqüentava simpósios e procurava conhecer pessoas que se interessavam por seres extraterrenos, resolveu entrar na Cultura Racional, que prometeu prepará-lo para entrar em contato com seres extraterrenos. Agregado à seita, Tim, envergando a bata branca, passou a pregar nas ruas a filosofia de Coelho, que ele chamava de “grão-mestre-varonil”, conforme uma letra sua na época. Nessa fase, que durou cerca de dois anos, entre 1974 e 1976, ele pirou na onda Racional e chegou a assinar cheques como “Tim Maia Superior”. Gravou quatro compactos e dois álbuns independentes – Tim Maia Racional, volumes. 1 e 2, de 1974 e 1975 – por sua Gravadora Seroma [Iniciais de Sebastião Rodrigues Maia, o nome verdadeiro de Tim], cantando canções lisérgicas que louvavam a seita, beirando o ridículo. As 18 faixas não contêm meio termo: fazem desbragado proselitismo da Cultura Racional. Uma delas é um dos tópicos de Universo em Desencanto, seguido ao pé da letra: “O dever de fazer propaganda deste conhecimento”.
Comércio eminentemente informal — O desencanto com a Cultura Racional foi rápido: “Quando cheguei lá, vi que o negócio era umbanda, candomblé e baixo espiritismo. O chefe, Manoel Jacintho Coelho, passou 15 anos com o seu Sete de Lira e tinha uma propriedade enorme em Nova Iguaçu, que incluía até um motel para extraterrenos. Ele era um tarado sexual e aquilo era uma sacanagem total. A Rubenilda me contou. E depois as pessoas que ele sacaneou foram me revelando: dono de haras, de metade de Jacarepaguá e de várias empreiteiras que fizeram a ponte Rio-Niterói. Milionário. Só de excursão para São Paulo eu fiz umas 10 – pagando tudo, ônibus e mais ônibus. Íamos na televisão com o livro nas mãos e, só de uma vez, o Jacintho vendeu 10 mil livros. Ele era esperto também e comprou 10 rolos do taipe que eu tinha gravado na RCA.”
Concepção platônica — “O negócio todo girava em torno de vender o livro. Enquanto eu estive lá, nunca ganhei tanto dinheiro e nunca perdi tanto dinheiro. O homem morreu, mas a família continua administrando essa farsa, vendendo milhares de livros”. Os discos panegíricos deixaram de existir oficialmente. Tim proscreveu-os
e mandou que fossem recolhidos das lojas. Viraram raridades disputadas a preço de ouro em sebos e no comércio eminentemente informal [Pirata].
Apóstata, passou a amaldiçoar a seita e a acusar seus condutores de charlatães, e não era para menos: Tim se desfez de seus bens materiais, incluindo os móveis de seu apartamento. “Ele ficou muito antagônico ao movimento depois. Passou a não gostar dos dogmas, da história de que na relação sexual a mulher magnetizava o homem”, lembrou o músico Junior Mendes, que tocava com ele na época, mas não aderiu à seita. “Tudo que cai para o lado religioso pode ser interpretado como fragilidade psicológica, mas é também uma busca intelectual. Tim sempre foi interessado por seres extraterrestres, nos últimos anos se ligou à Ufologia”, completou Mendes. Desde que Tim saiu do transe e recuperou a razão, a Cultura Racional procurou relativizar e esvaziar a importância dele para o movimento: “Tim Maia, como outras tantas milhares de pessoas, teve a oportunidade de ler o livro Universo em Desencanto. Tim Maia tomou conhecimento do livro por dois anos e era um leitor como outro qualquer leitor, pois não há hierarquia na Cultura Racional. Fazia a divulgação do livro de forma espontânea como qualquer leitor da Cultura Racional se sentia motivado a divulgar a obra para compartilhar com as pessoas o seu inédito conteúdo. Na Cultura Racional se lê para se entender, e quanto mais se entende mais se sabe a razão da nossa existência numa condição provisória e sofredora. Tim Maia não é uma referência da obra, pois nem chegou a ler a mesma na sua totalidade. E ninguém é uma referência na Cultura Racional, pois só o livro Universo em Desencanto é a referência Racional e seu autor: o Racional Superior”.
A Cultura Racional adotava estratégia idêntica a do espiritismo, da maçonaria, da Ordem Rosa-Cruz, da Cientologia, da Seicho-No-Ie, da Soka-Gakkai e de outras tantas organizações congêneres ao negar sua condição de entidade religiosa. Sua finalidade – reiterava – era apenas filosófica. Para chegar a esse conhecimento bastaria ler os livros Universo em Desencanto. Os livros seriam uma espécie de panacéia, a única via para a salvação. Certa vez, perguntado como os analfabetos, os deficientes visuais e outros impossibilitados fariam, destarte, para desfrutarem o mesmo privilégio, Manoel Jacintho Coelho não titubeou: “Ora, basta que durmam com os livros debaixo do travesseiro”. Menos mercenária, mas tão “racional” quanto, é a resposta à mesma pergunta contida num dos volumes de Universo em Desencanto: “A fase da natureza é a Fase Racional. A própria fase se incumbe naturalmente do desenvolvimento de todos. Por estarem sob a orientação de uma fase consciente e positiva, fase essa de uma energia pura, limpa e perfeita que é a Energia Racional. Porque todos querem deixar de ser como são: sofredores e mortais. Ninguém quer nascer mais aí em classes inferiores para penar e sofrer. Todos querem é subir para o seu verdadeiro Mundo de Origem – o Mundo Racional.”
O ufólogo e editor da Revista UFO A. J. Gevaerd escreveu que, “pior ainda que esse comércio, eram as doações que os adeptos faziam (e ainda fazem) à seita, o que permitiu a Coelho reunir um patrimônio invejável. No início de suas atividades, seguindo o padrão dos modismos, eram principalmente os adeptos ricos e abastados que ingressavam na seita e que ofereciam bens em troca de um lugar no tal universo racional. Muitos artistas, autoridades, socialites, transferiram terras, fazendas, patrimônio etc e até trabalharam para divulgar a seita e vender seus livros” [Veja UFO 16, agosto e setembro de 1991]. As concepções da Cultura Racional estão calcadas, empiricamente, no sistema metafísico do ateniense Platão (428-347 a.C.), que culmina no mundo divino das idéias e se contrapõe à matéria obscura e incriada. Entre as idéias e a matéria vagam o demiurgo e as almas, através dos quais desce das idéias à matéria aquilo de racionalidade que na matéria aparece.
Mundo ideal — O divino platônico é representado pelo mundo das idéias e especialmente pela idéia do Bem, situada no vértice. A existência desse mundo ideal se evidenciaria pela necessidade de estabelecer uma base ontológica, um objeto conceitual adequado, e pela necessidade de justificar os valores, o dever ser, de que este nosso mundo imperfeito participa e a que aspira. Da idéia – o ser, verdade, bondade, beleza – deriva tudo quanto há de positivo, de racional no vir-a-ser da experiência. Da matéria – indeterminada, informe, mutável, irracional e passiva – deriva, ao contrário, tudo que há de negativo na experiência. Para Platão, para que o universo possa subsistir sem prejuízo deve haver harmonia, de maneira que o Todo seja unificado. O mesmo deve acontecer com a Cidade. Tudo deve ser orientado de forma harmônica para um fim comum. O modelo é o da Cidade Ideal – o Mundo Racional, para os da Cultura Racional –, erguido no céu, que não se confunde com o do universo visível.