A volta da Terra ao espaço já deixou de ser infinito. O último alerta que a tripulação da Estação Espacial Internacional (ISS) viveu foi mais uma prova disso. Em 28 de junho os seis tripulantes que nela estavam foram obrigados a fugir para duas naves russas Soyuz acopladas à estação [Veja Astronautas chegaram a abandonar a ISS nesta terça-feira devido ao lixo espacial próximo]. A causa da emergência foi um pedaço de lixo espacial que passou a 335 m de distância do complexo, uma “unha negra” em termos astronáuticos que pôs as agências espaciais russa (Roscosmos) e norte-americana (NASA) de cabelos em pé.
Caso tivesse acertado na ISS, o fragmento poderia colocar fim ao projeto que custou 69,47 bilhões de euros, seria um estalo na cara das potências espaciais que ainda não tomaram uma ação determinante para resolver um problema, que no limite, pode impedir o acesso ao céu.
Esta sequer foi a primeira vez em que a ISS se arriscou a ser atingida pelos detritos esquecidos da exploração espacial. Primeiro em março depois em dezembro de 2009, dois fragmentos ameaçaram as expedições. O primeiro passou a 352 km de distância, o segundo a apenas um quilômetro e quase sem aviso.
O problema é que no espaço as velocidades destes objetos são de milhares de quilômetros por hora. Uma esfera de alumínio de dez centímetros que atinja um aparelho tem uma força explosiva equivalente a sete quilos de TNT, segundo a NASA.
Quem pensou na construção do complexo teve em conta esses detritos. “Os principais módulos da estação têm escudos e podem protegê-la de objetos entre um e 1,4 centímetros de diâmetro”, explicou por telefone ao Público Heiner Klinkrad, responsável pelo Gabinete de Detritos Espaciais da Agência Espacial Européia (ESA). “No caso de ser material com tamanho maior a aproximar-se da ISS, que se encontra a 350 km de altitude em relação à Terra, é necessário fazer um desvio da rota, o que já aconteceu 12 vezes no passado”, adiantou Klinkrad.
Infelizmente, o detrito que originou a última emergência foi detectado muito próximo da ISS, impossibilitando a realização da manobra de evasão a tempo. O objeto “raspou” a estação como nunca outro o tinha feito. O próximo pode atingi-la.
O pesadelo da multiplicação
O mais antigo aparelho que está no espaço é um satélite que orbita a Terra há mais de 53 anos. O Vanguard 1 foi lançado em março de 1958 pelos Estados Unidos e deixou de comunicar em 1964. Está numa rota entre os 654 e 3969 km de altitude e imagina-se que só vai cair na Terra dentro de 2000 anos.
Hoje, o Vanguard é um dos 11 mil objetos com mais de 10 centímetros que andam rodeando o planeta. Este número sobe para 100 mil que têm um tamanho entre um e 10 centímetros e escala para muitos milhões no caso de detritos mais pequenos do que um centímetro.
Segundo a ESA, existem cerca de 30 mil objetos a serem seguidos pelos telescópios terrestres. “Dos 16 mil [que se conhece a origem da sua órbita], pouco mais de 1.000 são naves operacionais”, disse Klinkrad. Dos 28 mil objetos enviados para o espaço desde o Sputnik, 19 mil já caíram na Terra, o resto está em órbita e equivale a 6.300 toneladas de lixo. São satélites que não funcionam, material necessário para o lançamento de naves, detritos químicos etc, que foram se acumulando ao longo do tempo.
70% deste material está abaixo dos 2000 km de altitude. No início da era espacial, a NASA e depois as outras agências espaciais viam o entorno da Terra como um saco sem fundo. Que se não era infinito, pelo menos era vasto o suficiente para dois objetos não colidirem um com o outro.
Este conceito chamado de big sky theory [teoria do céu grande] foi abalado em 2009 quando se deu a colisão entre o Iridium-33, um satélite de comunicações dos EUA que estava ativo, e o Kosmos-2251, um aparelho russo inativo há mais de dez anos. O Iridium chocou contra o Kosmos a 790 km de altura, por cima da Sibéria, produzindo 2.100 novos fragmentos que se espalham ao longo de uma altitude entre os 600 e 1300 km. Assista a representação do que se passou: É o segundo maior aumento absoluto de fragmentos que se deu na história espacial. O primeiro foi o satélite chinês Fengyun-1C que em 2007 foi destruído pelos chineses, numa demonstração de poderio militar que resultou em 3.000 fragmentos novinhos em folha para navegarem pelo espaço. “No passado, um acontecimento que produzia 400 ou 500 fragmentos já era grande, mas estes dois foram os maiores que já vimos”, explicou o responsável da ESA [Veja Aumenta a possibilidade da ISS ser atingida por dejetos do espaço].
A colisão de 2009 já tinha sido antecipada há mais de 30 anos por Donald Kessler, o antigo cientista norte-americano da NASA, que em 1978 escreveu um artigo em que profetizava este fenômeno [Veja Collision Frequency of Artificial Satellites: The Creation of a Debris Belt]. A acumulação de aparelhos espaciais e detritos faria com que mais cedo ou mais tarde começasse a haver colisões entre objetos. “O resultado seria um aumento exponencial do número de objetos ao longo do tempo”, escreveu na época. O que “criaria uma cintura de detritos em volta da Terra”.
A idéia de uma cascata de acontecimentos
em que as colisões produziriam novos detritos que aumentariam as probabilidades de novas colisões ficou com o nome de síndrome de Kessler. O cientista, que se reformou em 1996, antecipou no artigo de 1978 que o início desta cascata de acontecimentos seria dali a 30 ou 40 anos. “Eu sabia que alguma coisa acabaria por acontecer”, disse Kessler à revista Wired, num artigo de 2010, depois da colisão do Iridium.
Retirar o lixo
“Provavelmente estamos presenciando o início de uma situação de descontrole”, defendeu Heiner Klinkrad, que explicou que o choque do Iridium fez duplicar a hipótese da colisão de satélites da ESA que estão em órbita naquelas altitudes. Em 2010, depois de mais de uma década de discussão que envolveu as 12 potências espaciais, a Organização das Nações Unidas (ONU) lançou um documento com diretrizes para controlar o problema dos detritos espaciais [Veja detalhes e referências, clicando aqui]. O documento tem uma série de normas que já são seguidas na maior parte das vezes pelas agências espaciais [Saiba mais em Detrito espacial].
São medidas simples para reduzir o número de objetos nas órbitas utilizadas e passam a ordenar os satélites em fim de vida a descerem para órbitas mais próximas da Terra, de modo a colidirem mais rapidamente. No caso de estarem mais distantes, são comandados para ficarem em órbitas ainda mais afastadas, que funcionam como um cemitério. Outra recomendação passa por obrigar os aparelhos a expelir todo o combustível no final de vida para evitar explosões e produção de fragmentos. Mas estas medidas não são suficientes.
“Mesmo que reduzíssemos perfeitamente o número de fragmentos produzidos, e a melhor forma de fazê-lo seria pararmos todos os lançamentos espaciais, a previsão nos diz que a massa que já existe em órbita é suficiente para causar o síndrome de Kessler”, explicou Klinkrad. “O que temos de fazer é retirar o material de órbita”, acrescentou.
Nos últimos anos têm surgido idéias para retirar este lixo de órbita, como lasers que empurrem ou desintegrem os objetos [Veja Laser é proposto para \’remover\’ lixo espacial], nanossatélites que puxam os detritos para a Terra, entre outras mais complexas. Segundo o responsável da ESA a implementação destas técnicas é “cara”. “As pessoas estão de acordo com a mitigação de que existe um problema, o próximo passo é retirar o lixo de órbita e ainda não há um acordo nisso”, disse Klinkrad. E não é só um desafio técnico, explicou. “Não se pode chegar a um aparelho de outro país e retirá-lo de órbita, é uma questão em aberto a ser discutida”.
Entretanto, o lixo se acumula. Todos os anos mais 500 toneladas de material são lançadas para o espaço. Embora nas órbitas onde estão os satélites de telecomunicações o perigo não seja imediato, mais abaixo o cenário é bem diferente, como demonstra a última emergência da ISS. “Se não retirarmos os detritos, há regiões que correm um risco inaceitável de terem missões”.