São constantes, ao longo da história, narrativas de viagens de seres humanos a outros mundos, especialmente nas décadas de 50 e 60. Indo além de Adamski, Fry, Bethurum, Allingham e outros que se limitaram a alegar terem apenas mantido doces colóquios com os tripulantes dos misteriosos aparelhos, surgiram aqueles que, não contentes em permanecer na Terra ou fazer breves viagens de disco voador, resolveram visitar in locu Marte e outros planetas próximos, então praticamente os únicos conhecidos pela astronomia. Considerando que alguns ufólogos fetichistas — ou seja, que colecionam e cultuam quaisquer objetos materiais da Ufologia, considerados por eles como a encarnação do espírito dos que os possuíram ou ao qual estiveram ligados, sendo, portanto, portadores de suas qualidades e propriedades “mágicas” — andaram desencavando do fundo do baú e conferindo crédito a tais casos, resolvemos analisar brevemente dois deles, protagonizados por contatados tupiniquins.
De origem italiana, o paulistano Antonio Rossi trouxe a público, no final dos anos 50, o livro Em Um Disco Voador Visitei Outro Planeta [Nova Era, 1957], prefaciado pelo general do Exército Levino Cornélio Wischral, que se referiu ao autor como “metalúrgico, homem simples, trabalhador, prestativo, de caráter virtuoso, exemplificado, tanto no lar como na rua”. Em suma, Rossi, que após décadas de ostracismo relançou o livro e reapareceu em uma entrevista recheada de humor no talkshow Jô Soares Onze e Meia, levado ao ar em 09 de maio de 1996, contou que em uma tarde de primavera — ele não especifica a data — estava a pescar no Rio Paraibuna que atravessa a cidade do mesmo nome, no norte do estado de São Paulo, quando notou duas estranhas criaturas aproximando-se a passos lentos.
O homem se aterrorizou com a súbita aparição, ademais porque ambas encontravam-se absolutamente nuas. Desprovidas de órgãos genitais, pelos ou cabelos, eram muito altas, devendo pesar cada uma por volta de 120 kg. Tinham somente dois dedos em cada mão e em cada pé. Não tardou, porém, a entrar em entendimento com as criaturas desnudas por meio duma espécie de “telepatia visual” ou “fala-visual”, ficando ciente de que provinham de outro planeta. Convidado a entrar no disco voador — ou “volitor”, como chamavam — e a visitar o seu mundo de origem, acedeu manifestando justificado receio. Para que resistisse à viagem interplanetária, deram-lhe de beber um líquido grosso como o mel. Não cessou de conversar por meio da tal telepatia visual com os dois seres, um dos quais era médico e se chamava Jânsle. Foi ele o solícito cicerone de Rossi no planeta em que presenciou as mais assombrosas e espetaculares maravilhas.
Arquitetura estilo Oscar Niemayer
No tal mundo, cujo nome ou localização não lhe foram revelados, tudo era feito do mesmo material vítreo, relativamente transparente. A arquitetura, sempre obedecendo a padrões curvos — no estilo da de Oscar Niemayer —, deslumbrou-o. A tecnologia alcançara um nível de progresso espantoso. Vivia-se em um estado de máximo bem-estar econômico e social. As casas dispensavam a cozinha, visto que os alimentos previamente preparados ficavam disponíveis em depósitos públicos, onde os habitantes se abasteciam conforme suas necessidades e sem qualquer dispêndio, pois tudo era gratuito. As residências também prescindiam de banheiro, posto que os habitantes não se sujavam nem expeliam resíduos de qualquer natureza. A fecundação era feita através de somente um prolongado ósculo. A mulher era provida de uma bolsa para gestação e de uma pequena incisão por onde saía o rebento.
Foi lhe dito que o nascimento se processava assim sem os habituais sacrifícios, dores e aflições comuns às terrenas. O homem, então, instalado em grandioso estádio, assistiu a uma competição esportiva em sua honra, no qual os jogadores portavam-se como verdadeiros cavalheiros, contrastando com a violência que por vezes campeava em nossas arenas. O jogo era regulado por um sistema de luzes e cores que dispensava o árbitro, os bandeirinhas e quejandas autoridades. A prática daquela modalidade beneficiava extraordinariamente o físico e a mente, ou seja, era como se nadassem e jogassem futebol e xadrez ao mesmo tempo! A bordo de um volitor, cujo funcionamento não conseguiu entender muito bem, percorreu uma vasta zona agrícola. Admirou-se com uma fábrica de volitores e engenhos congêneres que empregava avançadas técnicas de metalurgia. Mas o que mais o agradava nessa colossal metrópole, fosse pela harmonia que o tocava profundamente, fosse pela suavidade que lhe acariciava os ouvidos, era a música que percutia nos céus.
Jânsle disse que existem planetas tanto superiores como inferiores ao seu, e que também a Terra, um dia, iria atingir o mesmo avanço evolutivo daquele mundo feliz. Naquela ilha de utopia, o regime de bens comuns não é mais reservado a uma pequena elite, mas estendida a todos os indivíduos. Cada um trabalha, alternadamente, por períodos de dois anos, na agricultura e em serviços urbanos. As casas não possuem fechadura e a cada 10 anos mudam os ocupantes, por um sistema de sorteio. A grande tarefa do governo é planificar a produção e adaptar a oferta à procura. Os gêneros são repartidos em armazéns públicos em que cada pai de família vem procurar o que precisa sem necessitar de dinheiro e sem pedir mais do que o necessário, pois a abolição da propriedade privada individual fez desaparecer o gosto pelo luxo. Toda vez que há excedente de produção, o estado diminui as horas de trabalho e orienta as pessoas para grandes trabalhos públicos.
Uma sociedade imaginária
Estamos falando do planeta visitado por Rossi? Poderíamos dizer que sim, mas na verdade se trata da sociedade imaginária descrita em De Optimo Statu Reipublicae Deque Nova Insula Utopia, ou simplesmente Utopia, livro que notabilizou o estadista, jurista e escritor Thomas Morus — forma alatinada pela qual é literariamente conhecido Thomas Moore, grande chanceler da Inglaterra, nascido em Londres em 1478 e aí decapitado em 1535. Escrito em 1516, em latim, foi editado na Basiléia, na Suíça, pelo seu amigo, o humanista holandês Erasmo de Rotterdam (1467-1536), a quem revelava, em sua correspondência particular, a repugnância que sentia pela vida parasitária e faustosa da corte: “Não podes avaliar com que aversão me encontro envolvido nesses negócios de príncipes. Não há nada mais odioso que esta embaixada”. Referia-se à embaixada diplomátic
a enviada pelo rei da Inglaterra a Flandres a fim de resolver um dissídio surgido entre este país e o príncipe Carlos de Castela.
Na obra Utopia, que conferiu renome universal a Morus e virou sinônimo de país imaginário, projeto irrealizável, quimera e fantasia, é apresentada uma organização ideal, perfeita, calcada na República de Platão: um estado democrático-comunista de onde foram erradicados os vícios e abusos dos governantes, o despotismo, o imperialismo, o egoísmo, a corrupção e as injustiças de toda espécie. ?Insurgindo como a primeira crítica fundamentada ao regime burguês, Morus adotou uma forma de conversação íntima durante a qual aborda ex-abrupto as questões mais novas e mais intrincadas. A primeira parte espelha fielmente as violências e misérias da então decadente sociedade feudal, em particular, do povo inglês sob o reinado de Henrique VII.
Luxúria, impunidade e violência
Outras modalidades de opressão e sofrimento, que não só a avareza do rei, o atormentavam. A nobreza e o clero detinham a maior parcela das terras e das riquezas públicas. Os grandes senhores feudais mantinham uma multidão de vassalos, fosse por luxúria, fosse para que assegurassem a impunidade de seus crimes ou ainda para utilizá-los como instrumentos de violência contra os vilões. Esta vassalagem era o terror do camponês e do trabalhador. Paralelamente, o comércio e a indústria externa da Inglaterra não haviam se expandido o suficiente, daí a falta de trabalho e de pão. A agricultura padecia desde que a nascente indústria da lã instou a transformação dos campos em pastagens para carneiros. Em consequência, multiplicaram-se os índices de miséria, mendicidade, roubos e assassinatos entre os camponeses.
Desprovidas de órgãos genitais, pelos ou cabelos, as estranhas entidades extraterrestres eram muito altas, devendo pesar cada uma por volta de 120 kg. Mas, estranhamente, tinham somente dois dedos em cada mão e em cada pé
A lei inglesa, por sua vez, permanecia implacável, tratando os problemas sociais como casos de polícia, punindo com a morte, indistintamente, o ladrão, o desocupado e o assassino. Vivendo em meio a esse obscuro panorama, é perfeitamente compreensível que Morus encetasse a sua denúncia satirizando todas as instituições da época e em contrapartida edificando uma sociedade imaginária ideal, sem propriedade privada, com absoluta comunidade de bens e do solo, sem antagonismos entre a cidade e o campo, sem trabalho assalariado, sem gastos supérfluos e luxos excessivos, com o estado como órgão administrador da produção etc. Se concomitantemente aos fartos preceitos morais e éticos apresentasse provas tangíveis, o livro de Rossi seria considerado um dos mais importantes da Ufologia e quiçá da história. Entretanto, nem todos os juramentos de fidedignidade tiram-no do rol das obras de ficção científica, bastante imaginativa por sinal.
Uma década depois, Artur Berlet (1931-1994), gaúcho do município de Sarandi, descendente de imigrantes alemães e franceses que se miscigenaram com sangue ibérico e caboclo, despontaria com uma história tão semelhante ao de seu antecessor Antonio Rossi que não raro é confundida com a mesma. Seu livro Os Discos Voadores: Da Utopia à Realidade [Editora e Gráfica A Região, 1978], parece um remake de Em Um Disco Voador Visitei Outro Planeta. O médico e ufólogo alemão Walter Karl Buhler, já falecido, fundador e presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Discos Voadores (SBEDV), prefaciou e Jorge Ernesto Macedo Geisel — nada menos do que oficial de reserva da Aeronáutica e irmão do general gaúcho Ernesto Geisel —, penúltimo presidente da República do Regime Militar, elaborou a introdução.
A exemplo do general Levino Cornélio Wischral, Geisel traçou um perfil extremamente positivo de Berlet: “Um homem perfeitamente normal, goza de excepcional saúde física e nunca demonstrou qualquer sinal de debilidade mental, como foi anunciado maldosamente pela imprensa encomendada. Homem trabalhador, simples e eficiente é bastante conhecido da população de Sarandi, estimado e sempre tido como homem sério e honesto. Só possui instrução primária, entretanto, inteligente e observador, soube assimilar com grande proveito para si e para toda a coletividade os ensinamentos profundos que sua viagem a outro planeta a bordo de um disco voador lhe trouxe”.
Problemas psicológicos
Seria só coincidência que ambos os livros tenham sido prefaciados e avalizados por militares, este último intimamente comprometido com a manutenção da ditadura recém-instalada? Provavelmente não. Os militares brasileiros, que seguiam à risca a cartilha norte-americana, agiram do mesmo modo, procurando esvaziar e obliterar os contatos sérios e prestigiar os ridículos e caricaturais, que tenderiam a aumentar a aura de descrédito — nisso semeavam ainda mais confusão e afastando os cientistas da pesquisa ufológica metódica por receio de serem vistos metidos em uma área dominada por desvairados.
Voltando ao suposto viajante espacial, uma terrível tragédia pessoal abateu e marcou Berlet até o fim de seus dias. Em conse-quência de uma explosão ocorrida na pedreira onde trabalhava a serviço da Prefeitura de Sarandi, Berlet teve uma das pernas amputadas, ficando impossibilitado de continuar exercendo sua profissão de tratorista. De início, como ele próprio admitiu, isso lhe trouxe sérios problemas psicológicos e financeiros. O pouco que recebia na condição de inativo, não era suficiente para sustentar condignamente a esposa e os quatro filhos, um menino e três meninas. “Apesar de tudo, posso dar graças a Deus por ter o privilégio de viver em um país onde a iniciativa privada recebe apoio e incentivo de todos os lados, tanto governamentais como particulares”, costumava dizer.
Artur Berlet era um otimista e um homem esforçado. “Por isso, em vez de um único ramo de atividade, passei a exercer dois outros, e com isso criar e educar meus filhos até a idade adulta em que hoje se encontram, tendo a satisfação de vê-los todos bem empregados e com um bom início de vida”, completou. Sua experiência o transformou radicalmente. Ele viajava pelo interior do Rio Grande do Sul em maio de 1958, quando algo lhe ocorreu. No dia 14 daquele mês ele tentava, com tremendas dificuldades, vencer a pé os 18 km que o separavam de Sarandi. Por volta das 19h00, quando passava pela fazenda de propriedade de Dionísio Peretti, situada
na bifurcação chamada Natalino, teve a atenção despertada por uma luz que brilhava a cerca de 200 m dali. Inicialmente pensou que fosse a mãe do ouro, entidade folclórica que indica tesouros enterrados e é interpretada como um UFO pelos ufólogos.
Berlet atravessou a cerca de arame farpado e, a 30 m da luz, viu que se tratava na verdade de um objeto na forma de duas bandejas sobrepostas, com cerca de 30 m de diâmetro. Por ser daltônico, não pôde distinguir as cores. Aproximando-se ainda mais, deparou-se com dois vultos que projetaram um fortíssimo jato de luz em sua direção, ao que imediatamente perdeu os sentidos. Quando voltou a si, viu-se no interior de uma sala retangular, amarrado a uma cama tipo leito de hospital. Minutos depois, dois seres o soltaram e o transferiram a um compartimento anexo àquela sala, onde o obrigaram a vestir uma capa de mangas compridas. Levado a outro recinto, começou a passar mal. Sentia como se seu peso — 90 kg — tivesse se reduzido à metade e seus membros aumentado de volume. Avaliou que sua fraqueza era devido ao fato de estar há muito tempo sem alimentar-se.
Democracia espacial
Os mesmos seres que o escoltaram voltaram acompanhados de uma mulher trazendo uma bandeja de alimentos. Com o único talher disponível que funcionava tanto como garfo ou colher, comeu algo parecido com carne e um farináceo escuro, da consistência do pão-de-ló. O gosto não era dos melhores. Bebeu uma água mais leve que o normal que escorria incessantemente da torneira da pia. Então, colocado diante de quatro ou cinco seres, tentou inutilmente entabular conversação em português, espanhol e italiano — e recorreu por fim ao alemão, língua que lhe foi ensinada antes mesmo do português. Um dos seres, de nome Acorc, levantou-se com uma expressão de júbilo e perguntou-lhe: “Deutsch?” Berlet respondeu afirmativamente.
Assim o gaúcho viria a saber que estavam no planeta Acart, a 60 milhões de km da Terra, distância correspondente a Marte. Berlet também afirmou que os dois satélites de Marte — Phobos e Deimos — eram na verdade plataformas artificiais e se deu mal, já que a ciência comprovaria o absurdo dessa suposição. Os países de Acart haviam se unificado fazia um século. A abolição das fronteiras traduzia o fim das guerras e do uso de dinheiro. O governante supremo era escolhido a cada três anos pelo voto popular. No Palácio Central, o “Filho do Sol”, como era chamado, reunia-se com os membros do Conselho, decidindo conjuntamente os assuntos.
Artur Berlet teria passado quase 10 dias — de 14 a 23 de maio — passeando, comendo, bebendo e dormindo nessa perfeita democracia platinada. Nesse ínterim, referiu-se a uma única ida ao banheiro, e ainda assim só para tomar banho, logo que lá chegou, depois que fora levado do quarto onde era mantido “prisioneiro” a outro mais espaçoso que possuía um anexo, à guisa de suíte. “Já que havia um banheiro, me dispus a tomar um banho. Nova decepção me aguardava, pois a água me parecia gás, de tão leve que era. Eu tinha a impressão de que se fosse jogar um balde daquela água contra uma garrafa vazia de pé, não a derrubaria”.
Guerra atômica na Terra
Coalhado de veículos aéreos, o céu de Acart contrastava com a multidão que se movimentava lentamente nas ruas. Os prédios residenciais tinham nove andares e cada andar quatro janelas frontais à frente das quais se estendia uma marquise para o pouso de pequenas aeronaves. Fizeram Berlet visitar zonas agrícolas e de piscicultura, uma cidade serrana, uma indústria de aço e, tal como Rossi, um estádio — onde assistiu a uma singular partida de futebol disputada por duas equipes compostas de 13 atletas cada — e uma fábrica de discos voadores. Acorc alertou-o sobre a iminência de uma guerra atômica na Terra, após a qual interviriam: “Nós temos um aparelho que neutraliza os efeitos maléficos da poeira radioativa, transformando-a em fertilizante para o solo”.
Coalhado de veículos aéreos, o céu de Acart contrastava com a multidão nas ruas. Os prédios tinham nove andares e cada andar, quatro janelas frontais à frente das quais se estendia uma marquise para o pouso de pequenas aeronaves
O ET foi ainda mais contundente: “Em seguida à guerra entraremos em ação, porque se custarmos a agir, a vegetação morrerá nas zonas mais conflagradas”. Seu contato com Berlet era contínuo, mas este manifestou saudades de casa e Acorc o levou de volta no disco voador, deixando-o a poucos metros de uma rodovia a cerca de cinco quilômetros de Sarandi, em plena madrugada. Alquebrado da viagem, transpôs dificultosamente uma cerca e acabou se estatelando no chão. Com o coração aos pulos, pensou que não resistiria. Arrastando-se, atingiu o barranco da estrada e se deitou na relva encharcada. Ali, imerso em reflexões, chegou a maldizê-los e a injuriá-los por não o terem deixado mais perto da cidade. Com muita cautela e apoiando as mãos no barranco, colocou-se de pé. Improvisando uma bengala, andou cambaleante até a estrada.
A caminho da cidade, Artur Berlet viu um jipe Willys se aproximando, mas como logo se recordou das recomendações de Acorc para que não entrasse em contato com ninguém até que chegasse a casa, não pediu carona. Naquelas condições, levou três horas para cumprir o trajeto, normalmente percorrido em no máximo uma hora. O dia já clareava quando apontou em sua rua, cruzando com as primeiras pessoas que voltavam da vigília na Igreja. Estas o cumprimentavam, mas ele só respondia com sussurros. Passara tanto tempo falando alemão que o português lhe soava estranho. Finalmente reviu sua família após nove dias de intensas aventuras. Psicologicamente abalado, por vários dias não saiu de casa.
Valores e princípios estabelecidos
Contornando limitações literárias e a falta de tempo, a maior parte do qual consumida com a obtenção do pão de cada dia, encheu 14 cadernos que nove anos depois se transformariam em livro graças ao apoio de amigos, entre eles o gerente do Banco do Brasil Carlos de Oliveira Gomes — que descobriu e recomendou o caso —, o bacharel Rui Schmidt, o ufólogo Buhler e o militar Geisel. Atenhamo-nos particularmente a dois elementos, bastante reveladores, referidos por Berlet em sua estadia em Marte ou Acart [Note-se a semelhança fonética]: o talher que servia tanto de garfo como colher e os prédios residenciais de nove andares.
O único talher disponível, na descrição de Berlet, funcionava tanto como garfo ou colher. Pelo esboço que desenhou, qualquer entendido em arte imediatamente identifica-o não como algo oriundo de Marte, mas da corrente dadaísta, vanguarda europeia surgida em 1916 por iniciativa de um grupo de jovens poetas, pintores e intelectuais de várias nacionalidades exilados na Suíça que, recusando-se a prestar serviço mili
tar e descrentes de uma sociedade a quem culpavam pelos estragos da Primeira Guerra Mundial, decidiram romper deliberadamente com todos os valores e princípios estabelecidos por ela anteriormente, estabelecendo a negação mais radical das tradições artísticas do Ocidente em todos os tempos.
Dadaísmo e Ufologia
Essa nova corrente difundiu-se a partir do ambiente boêmio da capital Zurique, onde todas as noites, no Cabaré Voltaire, uma espécie de café literário polivalente que assumia funções de sala de exposições, de teatro e de reuniões literárias, aberto pelo alemão Hugo Ball, artistas desenvolviam atividades experimentais ligadas ao teatro, à música e à expressão corporal, assim como à poesia sem sentido e ao desenho automático e aleatório. A própria palavra “dadá” não tem outro sentido senão a própria falta de sentido — perdido pela arte ante a irracionalidade da guerra —, enunciando a essência desse movimento rebelde, provocativo, bizarro, iconoclasta e anarquista. Mas o que isso tem a ver com a experiência do gaúcho? A conexão está nas semelhanças entre seu relato e fatos conhecidos da história.
As ideias dadaístas também se refletem parcialmente na produção de alguns artistas brasileiros nos primeiros anos do modernismo, o que pode ter sido fonte direta de influência — ou inspiração — para Berlet. O movimento dadá é o que mais lançou manifestos depois do futurismo, escritos de 1916 a 1920 por poetas e intelectuais. Pelo seu próprio caráter autonegador e autodestrutivo, o dadaísmo como movimento de grupo terminou precocemente em 1921, e nessa linha grande parte de seus adeptos se radicaria em Paris, onde André Breton redigiria o manifesto surrealista em outubro de 1924. Existem alguns pontos de partida ou elementos detonadores para as expressões da arte moderna. Fatos que invariavelmente despertam relações e influências nos caminhos tomados pelas diversas vertentes. Um deles é a guerra, um conflito bélico destrutivo, assombroso, alucinado, absurdo, cruel e vazio de sentido.
Tal como o dadaísmo, a Ufologia também surgiu logo depois de um conflito bélico, a Segunda Guerra Mundial — a mais destrutiva da história — e desenvolveu-se no bojo do início de outra, a Guerra Fria. As semelhanças e os pontos em comum, porém, não param por aí e são tantos que nos levam a afiançar que a Ufologia seria sim um produto dadaísta, senão ela mesma uma vertente ou ramo autônomo do movimento, com suas motivações, peculiaridades e contingências perpassadas por bases semiológicas comuns. A Ufologia acumulou ao longo das últimas décadas tal repertório de obras que, tomados pelo seu grau de irracionalismo, absurdidade, falta de lógica, de coerência e de sentido, ultrapassa o dadaísmo e o supera, se não em originalidade, ao menos em quantidade.
Os artistas dadaístas culpavam as forças supostamente racionais do desenvolvimento científico e tecnológico pela destruição da civilização europeia e a negavam com uma arte que era justamente o oposto do racionalismo: intuitiva, emocional, confusa, disfuncional e eivada de absurdos. Já a Ufologia nasceu negando e culpando, e praticamente sempre negou e culpou a ciência oficial pelos mesmos motivos e por supostamente esconder a verdade do povo e conspirar em conluio com os militares e os governos para acobertar o segredo em torno dos UFOs. E como os artistas dadaístas, contatados e ufólogos responderam com tudo que fosse contrário à ciência dita oficial, afastando-se ao máximo dela e abraçando as mais díspares e estapafúrdias disciplinas paracientíficas e pseudocientíficas, bem como as mais esdrúxulas doutrinas e correntes alternativas, o que vem impedindo que seja reconhecido e incorporado pelo mundo acadêmico.
Crenças e expectativas
As atitudes dadaístas, que tanto influenciaram e inspiraram alegados abduzidos e contatados, não estavam apenas em suas obras de arte. Seus artistas eram mais cidadãos provocadores do que propriamente artistas de ateliê, produtores de objetos. O mesmo se pode dizer de muitos ufólogos que deixam em segundo plano a preocupação com os estudos, a pesquisa e a análise, e se voltam prioritariamente para a divulgação ou provocação via meios de comunicação, desafiando autoridades e governos a revelarem a verdade sobre a presença de extraterrestres na Terra e impressionando o público com informações fantásticas, porém duvidosas e não comprovadas. Muitos são protagonistas de autênticas performances em programas de debates ou em talkshows televisivos, recebendo seguidos convites para repetirem suas atuações que costumam agradar a maioria leiga e ingênua que compartilha as mesmas crenças e expectativas, ou seja, de que em breve os discos voadores, encarados como benéficos, aterrissarão em massa, pondo fim aos tormentos e às angústias da humanidade. Eis a semelhança com o relato de Berlet, assim como de Antonio Rossi.
O lado incompreensível e agressivo do dadaísmo não raro enfurecia os espectadores. Esse lado na Ufologia não raro enfurece os céticos e afasta aqueles que antes eram interessados no assunto, reforçando o seu caráter underground e transgressivo. A Ufologia não os rejeita, muito pelo contrário, e só esparsamente os critica, em compensação não faz questão de defendê-los. O que a Ufologia faz é negar a validade de todas as tradições culturais anteriores, acusadas de repousarem em bases falsas, e desprezar tudo que não leve em conta a presença de extraterrestres na Terra, pugnando pela demolição das verdades oficiais e o completo redirecionamento das ciências para o estabelecimento definitivo do contato imediato e do intercâmbio com outras civilizações em prol do progresso da humanidade.
Parafernália ufológica
Na iconografia ufológica encontramos um sem número de desenhos, pinturas e esculturas produzidas por contatados que não deixam de ser, ao seu modo, autênticas obras de arte, e que apresentam as mesmas características e parecem estar imbuídos dos mesmos conceitos dos dadaístas. A única diferença é que não surgiram dentro dessa proposta nem foram revestidos com essa aura, e sim aspirando à condição, o que é muito mais difícil de reconhecer, de representações fiéis e verdadeiras de objetos extraterrestres. Basta,
no entanto, uma simples verificação para constatarmos que tais esboços, plantas, croquis, projetos, maquetes e protótipos de discos voadores, painéis de controle, computadores, armas de raios, máquinas de diversos tipos, tamanhos e finalidades etc, têm tanta chance de funcionar se construídos como indicados quanto os dos dadaístas.
A Ufologia nega a validade de todas as tradições culturais anteriores, acusadas de repousarem em bases falsas, e despreza tudo que não leve em conta a presença de extraterrestres na Terra, pugnando pela demolição das verdades oficiais
Por exemplo, os discos voadores de Adamski não passavam de meras chocadeiras, saleiros ou tampas de máquinas de café de seu tempo que o contatado apenas teve o trabalho de retirar de seus contextos usuais e rearranjar em cenários adrede preparados de modo que se parecessem com reluzentes naves venusianas e adquirissem um status inteiramente diferenciado do original. Na esteira de Adamski, a Ufologia recebeu uma batelada de fotografias ostentando constrangedoras tampas de panelas, pratos, calotas de automóveis, chapéus, cinzeiros, enfim, todo tipo de utensílios domésticos e industriais que não precisaram sofrer praticamente nenhuma interferência ou transformação para que sugerissem a presença de misteriosos engenhos nos céus terrenos.
O automatismo psíquico, processo no qual o artista tenta desligar-se do mundo real, negando sua racionalidade e tentando ouvir as vozes de seu inconsciente, bem como o coro de vozes ao seu redor, iria virar lugar comum entre os adeptos da Ufologia mística e praticantes da psicografia, da canalização e da transcomunicação, anos depois, em um aprimoramento das técnicas preconizadas pelo espiritismo. Há uma profusão de outros pontos em comum entre o dadaísmo e a Ufologia como ficou patente e subentendido — teríamos de dedicar muitas páginas ainda para tratar de cada um deles, por isso optamos por encerrar apontando um aspecto praticamente desconhecido e menos óbvio que soa como um dos mais significativos.
Pouso de pequenas aeronaves
O gaúcho Artur Berlet alegou ter visto prédios residenciais de nove andares que tinham em cada um quatro janelas frontais à frente das quais se estendia uma marquise para o pouso de pequenas aeronaves. De onde o contatado tirou o modelo? De outro planeta? Na verdade ele não precisou ir tão longe, mas apenas dar um pulo até a terra de seus antepassados. As linhas retas simples, a ausência de ornamentação e a funcionalidade se enquadram no estilo preconizado pela revolucionária Escola de Bauhaus, que revelou importantes criadores de vanguarda e fixou diretrizes estéticas no campo das artes, da arquitetura e do design que iriam prevalecer em todo o mundo no século XX.
A Alemanha, obrigada pelo Tratado de Versalhes a pagar altas indenizações aos países vencedores após a derrota na Primeira Guerra Mundial, via-se mergulhada no caos econômico e social. A hiperinflação e as altas de desemprego derrubavam sucessivos governos socialdemocratas. Ante o desafio e a necessidade de produzir em série objetos de consumo baratos para o povo, o arquiteto alemão Walter Gropius integrou a Escola de Artes e Ofícios, do belga Henri van de Velde, com a de Belas Artes, do alemão Hermann Muthesius, e fundou uma nova escola de arquitetura e desenho a que deu o nome de Staatliches Bauhaus [Bau significa construção e haus, casa, Casa Estatal de Construção].
A Bauhaus propôs o restabelecimento do contato entre a arte e a produção industrial, o que fez repensando a arquitetura e criando um novo conceito de design — calcado na geometria, na razão e na ciência — acessível a todas as camadas sociais alemãs. De um lado combatia a arte pela arte e do outro incentivava a liberdade de criação, mas dentro de convicções filosóficas comuns. Uma derivação óbvia disso foram as construções alemãs erguidas a partir daquele período, todas clássicas e “limpas”, o que parece ser exemplo de onde Berlet poderia ter sacado sua inspiração para relatar o que vira no planeta que alega ter visitado.
Se a Bauhaus ainda soa moderna e futurista, na época de Berlet deveria impressionar bem mais. Isso não surpreende levando-se em conta que os projetos não guardavam qualquer referência com o passado — ao contrário de todos os estilos anteriores — e eram inteiramente voltados para o presente e para o futuro, obedecendo aos princípios de racionalidade, simplificação e da unidade entre forma e função. Não foi acaso, portanto, que Berlet escolheu o estilo da Bauhaus para dar forma aos prédios e móveis do planeta que pretendeu ter visitado.