Antes de ser eleito sumo pontífice da Igreja Católica, o cardeal Joseph Ratzinger avaliou a dimensão teológica das aparições marianas na qualidade de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. O seu comentário assume particular interesse no que toca a estrutura antropológica das revelações privadas, apontando pistas essenciais para a antropologia cultural das chamadas experiências subjetivas extraordinárias. O atual papa Bento XVI distingue o termo “revelação pública” como ação reveladora de Deus destinada a toda a humanidade, concluindo com a realização do mistério de Cristo, e a designação revelação particular, relativa às visões e revelações após o tempo histórico do Novo Testamento. Fátima e outras manifestações similares aprovadas pela Igreja Católica integram esta categoria. Referindo-se ao controverso Segredo de Fátima, o cardeal Ratzinger, com louvável lucidez, afirma que muitas das imagens alegadas por Lúcia podem ser resultados do seu contato com a iconologia dos livros piedosos, no seu processo de aculturação, enquanto jovem religiosa nos conventos de Tuy e Pontevedra, pela mão dos seus confessores jesuítas. O papa Bento XVI, em termos de antropologia teológica, reconhece três formas de percepção ou visão: a que é feita pelos sentidos, ou seja, a percepção externa corpórea; a percepção interior; e a visão espiritual. Ele cita o caso da chamada visão do inferno – descrita na primeira parte do Segredo de Fátima – e que implica, necessariamente, uma modificação do estado de consciência do sujeito que ele não pode partilhar com mais ninguém. Noutras situações, em Fátima, fenômenos foram testemunhados como, por exemplo, o som de zumbidos ou a queda de filamentos brancos, como os que foram fotografados e analisados em outubro de 1957.
O cardeal Ratzinger sugere que uma “visão-tipo” de Fátima não seria uma experiência intelectual, sem imagens, como sucedeu em modelos da mística cristã, como Teresa de Ávila ou João da Cruz. Este ver interior, segundo o bispo de Roma, não significaria que se trate de ilusão, mas de um estímulo que está para além do sensível, facultando o acesso ao não-visível e a dimensão mais profunda da realidade. O então responsável pela Congregação da Fé chama também a atenção para um detalhe essencial da experiência visionária: se na visão exterior já interfere o elemento subjectivo, ou seja, o que vemos nos chega através do filtro dos nossos sentidos que computa um intrincado processo de traduções, na visão interior, isso é ainda mais claro, sobretudo quando se tratam de realidades que por si mesmas ultrapassam o nosso horizonte. Imprescindível é reter desta análise de Bento XVI a forma como o teólogo destaca o fato do vidente ter uma influência ainda mais forte: vê segundo as próprias capacidades concretas, com as modalidades de representação e conhecimento que lhe são acessíveis. “Tais visões não são em caso algum a fotografia pura e simples do Além, mas trazem consigo também as possibilidades e limitações do sujeito que as alcança” insiste Joseph Ratzinger. Ou seja, a antropologia da subjetividade constitui a fonte de onde tudo se projeta e onde tudo acaba.
Sobre o autor: Correspondente internacional da Revista UFO, Joaquim Fernandes, professor na Universidade Fernando Pessoa, do Porto, é co-fundador do Centro Transdisciplinar de Estudos da Consciência, na mesma instituição, que fala sobre as investigações sobre as aparições de Nossa Senhora de Fátima e a polêmica em torno do assunto. Fernandes estuda aspectos menos conhecidos da história e filosofia das ciências, a evolução dos modelos científicos, em particular no que diz respeita à cosmologia, o confronto entre as atitudes mentais e sociais, e as novas propostas científicas e tecnológicas em cada época, bem como a antropologia religiosa comparada, com destaque para os fenômenos paradoxais. Publicou várias obras de investigação histórica sobre as mesmas áreas, como As Aparições de Fátima e o Fenômeno OVNI [Editorial Estampa, 1995], Intervenção Extraterrestre em Fátima – As Aparições e o Fenômeno OVNI [Editora Amadora, 1982], OVNIS em Portugal [Editora Nova Crítica, 1978], Fátima nos Bastidores do Segredo [Lisboa, Âncora Editora, 2002] e Fátima Trilogy [Anomalist Books, 2008].