Celacanto provoca maremoto
Texto de Arnaldo Jabor para O Estado de S.Paulo
Há 35 anos, surgiu um estranho grafite nos muros do Rio: \”Celacanto Provoca Maremoto\”. Como um peixe pré-histórico provocaria um tsunami? O grafite virou um enigma, só decifrado anos depois: foi um jornalista, Carlos Alberto Teixeira, jovem na época, que inventou a frase célebre, tirada de um desenho animado (ironicamente) japonês: National Kid. A frase não queria dizer nada e justamente por isso ficou famosa. Nós sempre queremos significados e explicações. Por isso estamos em pânico: que significado extrair de um acontecimento como o terremoto/maremoto do Japão? Nenhum. Não há nada complexo no fato, poderíamos buscar explicações históricas, sociológicas, técnicas, em busca de responsabilidades e erros, até mesmo apontar o desejo dos japoneses de virarem um \”super-Ocidente\”, depois de Hiroshima.
O terremoto do Japão nos choca justamente porque não tem profundidade nenhuma. É tudo raso. Não houve erro. Não foi ninguém, a não ser a marcha tranqüila da matéria se ajustando na crosta, ignorando-nos: os micróbios que a habitam. O 11 de Setembro já tinha subvertido nosso orgulho de engenharia triunfal e superioridade econômica. Osama bin Laden esmagou a potência fálica do capitalismo, como um \”Godzilla\” invisível. Ele criou quase um cataclismo \”natural\”, o 11 de Setembro, com sua violência crua, indiferente à identidade de suas vítimas, mimetizou a brutalidade cega de um tsunami de Alá.
Por outro lado, o desastre japonês inverteu qualquer lógica na paisagem humana, todas as coisas ficaram \”fora do lugar\” e vimos que não há lugar certo para as coisas ficarem, não há paisagem racional: o navio em cima da casa, os edifícios afundando no mar, um manto negro de detritos flutuando calmamente sobre as cidades como se inunda um formigueiro ou se mata uma barata. Não foi Deus. Seria até bom que ele existisse, como no terremoto de Lisboa em 1755, quando mais de 100 mil morreram dentro das igrejas cheias de fiéis. Era dia de Todos os Santos. Voltaire, em seu texto sobre o desastre de Lisboa, denunciou a brutalidade do \”Criador vingativo\”. Mas, a fé resistiu, porque ao menos eles sentiam na carne os \”desígnios\” divinos, que matam seus devotos, em vez do Nada. Ao menos havia um Ser querendo nos punir ou salvar, havia alguém preocupado conosco. Havia ainda alguma transcendência no horror. Hoje não há mais nada, a impressão é que \”o sentido do acontecimento é o acontecimento não ter qualquer sentido\”.
Estamos famintos de transcendência, mas ela está rara – por isso a religião, drogas, autoenganos, magia. A banalização da morte precede grandes tragédias, mas o problema é que as tragédias é que estão ficando banais, tanto as naturais como as humanas. Qual a profundidade de homens-bomba se despedaçando por causa de um ser que não existe? Quem é o good guy e o bad guy numa guerra onde o inimigo quer morrer? Precisamos de agentes do mal, porque o mal moderno está autossuficiente, tem vida própria.
\”O escândalo hoje em dia é que um mal imenso possa ser causado com uma completa ausência de malignidade, que uma responsabilidade monstruosa possa andar a par com uma total ausência de más intenções. O caráter inverossímil da situação é de cortar o fôlego. No mesmo instante em que o mundo se torna apocalíptico, e isto por culpa nossa, oferece a imagem de um lugar habitado por assassinos sem maldade e por vítimas sem ódio. Em nenhuma parte há traços de maldade, não há senão escombros. A ausência de ódio e ausência de escrúpulos serão uma coisa só. (…) Na atividade do mundo chamada \”tecnologia\” é que a história está acontecendo; a tecnologia virou o \”sujeito\” da história, na qual somos apenas \”co-históricos\”.\” (Hannah Arendt e Günter Anders, apud Jean-Pierre Dupuy).
A própria confiança que o Ocidente tem na sua soberba tecnociência está em crise. Desconfiamos agora de sua infalibilidade com vexames sucessivos: óleo derramado, reatores invencíveis, aquecimento climático, destruição do ambiente, terrorismo com armas de destruição em massa.
Talvez a fome com que as nações ocidentais se lançaram, subitamente humanitárias, para destruir o Kadafi e proteger a Líbia, mostre como precisávamos exibir nossa potência técnica e bélica, tão humilhada por catástrofes naturais e humanas. Estávamos precisando mesmo de um filho da … , nítido, legítimo como Kadafi, espantosa caricatura do Mal – uma velha maluca de bigode e camisola.
O problema é que a tecnociência não nos brinda com transcendência nenhuma, ela é reta, finalista sem saber para onde, ela não tem alma ou sonhos éticos. Sempre que pensamos no futuro, pensamos no pior. O século 21, cheio de promessas, até agora só nos decepcionou. Precisamos de uma ética política global – qual? Hoje, já há uma máquina de guerra se programando sozinha e nos preparando para um confronto inevitável no Oriente Médio. Já se ouvem os trovões de uma tempestade. Os mecanismos de controle pela \”razão\”, sensatez, pelas \”soft powers\” da diplomacia perdem a eficácia. A época está ficando morta para palavras, na vala comum dos detritos humanistas. E a ciência não resolve o problema. No entanto, quando Hiroshima e Nagasaki foram derretidas como sorvete, a bomba americana foi considerada uma \”vitória da ciência\”.
O espetáculo luminoso de Hiroshima marcou o início da guerra do século 21. Auschwitz e Treblinka ainda eram \”fornos\” da Revolução Industrial, mas Hiroshima inventou a guerra tecnológica, asséptica. A bomba A agiu como um detergente, um mata-baratas. As bombas americanas foram lançadas em nome da \”Razão\”.
Nietzsche (quem sou eu para citá-lo?) sacou que temos de viver sem transcendência ou esperança, numa arte de viver além do bem e do mal. O mal atual não tem culpados. Daí a oportuna lembrança do velho grafite carioca: o celacanto produziu o maremoto? Seria ótimo. Ao menos, teríamos um culpado…