Este texto foi gerado em 21 de dezembro de 1996, um dia após a morte de Carl Sagan. Na época, saiu com pequenos cortes e alterações de copy desk em alguns boletins, páginas e revistas de circulação restrita. Nesta semana, em 09 de novembro de 2009, Sagan estaria completando 75 anos.
Carl Sagan, uma estrela de primeira magnitude – Há momentos em que somos tomados por uma profunda sensação de perda, bem diferente daquela que sentimos com a perda de entes queridos próximos. Uma sensação mais sóbria, menos desesperadora, porque nos atinge de maneira mais distante, mais indireta. Mas não menos profunda. Muitas pessoas — mas proporcionalmente poucas, se consideramos todos os habitantes de nosso planeta — experimentaram essa sensação indesejada e incômoda no dia 20 de dezembro de 1996. Aos 62 anos, Carl Sagan, o astrônomo norte-americano, o sábio ser humano do planeta Terra, nos deixou. Os astrônomos sabem que quanto maior e mais brilhante é uma estrela, mais rápida e furtiva é sua existência. E a estrela de Sagan sempre brilhou muito intensamente. Ficamos órfãos — todos nós, que acreditamos que nossa época e nossas conquistas são as mais notáveis de nossa jornada neste Universo — de nosso paradigma, nossa pipe-line, nosso exemplo, nosso mestre.
Júbilos e perdas – Nós vivemos numa época maravilhosa, em que a compreensão das questões essenciais que afligem o ser humano desde as suas origens começa a ser vislumbrada através do tênue feixe de luz que a pequena lanterna-ciência lança sobre as trevas de nossa ignorância. Poucas pessoas conseguem ver essas maravilhas, contemplar este momento único, regozijar-se de pertencer a este tempo, a esta época. Menos pessoas ainda compreendem que a nossa maior conquista é a própria lanterna. Ninguém se esforçou mais do que Carl Sagan para mostrar a todos, cientistas e leigos, a importância de tornar acessível a todos a posse dessa lanterna. Ninguém, mais do que Sagan, teve a coragem e a iniciativa de por a prova o pensamento científico, sem preconceitos, sem soberba, sem arrogância.
Podemos lembrar dele como um astrônomo de renome internacional, por sua participação em alguns projetos da Agência Espacial Norte-Americana (NASA), por sua constante aparição nos meios de comunicação de massa e também por seus inúmeros e deliciosos livros. Mas certamente, para os que conhecem, ainda que superficialmente, sua obra e suas idéias, será lembrado como um ser humano muito especial, com uma visão de mundo extremamente científica e, ao mesmo tempo, sentimentalmente poética: a ciência era sua musa, falar da ciência era sua poesia. Ao conseguir mostrar quão bela e, como diria o Sr. Spock, quão fascinante é a visão do universo proporcionada pelo pequeno feixe de nossa lanterna-ciência, Sagan inexoravelmente incutia em seus interlocutores o desejo, a ânsia pela posse dessa lanterna mágica.
Sagan era um sonhador. Perseguiu seus sonhos por toda a sua vida. Muitos, ele os viu realizados. Outros, deixou-os para realizar às gerações futuras. Quando seus livros, seus artigos em revistas, vendo-o na TV, em reportagens ou seriado, não podemos deixar de regozijar-nos e agradercer, não sabemos bem a quê ou a quem, o privilégio de existir nesta época, e compartilhar, ainda que distante na superfície de nosso planeta, porém muito próximo no mundo das idéias, da existência de um ser humano como Carl Sagan.
Sagan e o ceticismo – “Parece-me que é necessário um equilíbrio muito cuidadoso entre duas necessidades conflitantes: o escrutínio mais cético de todas as hipóteses que nos são oferecidas e ao mesmo tempo uma grande abertura a novas idéias. Obviamente que essas duas modalidades do pensamento estão em alguma tensão. Mas se você puder exercitar somente uma delas, qualquer que seja, você tem um problema sério. Se você for somente cético, então nenhuma idéia nova chega até você. Você nunca aprende nada de novo. Você se transforma em uma velho excêntrico convencido de que o absurdo é que governa o mundo (evidentemente que há muitos dados para lhe dar apoio.). Mas, de quando em quando, talvez uma vez em cem casos, uma nova idéia acaba acertando, válida e maravilhosa. Se você estiver no hábito demasiado forte de ser cético com tudo, você não a perceberá ou se sentirá agredido, e de qualquer maneira estará barrando o caminho da compreensão e do progresso.”
Por outro lado, se você estiver aberto a ponto de ser crédulo e não tiver um grama de ceticismo, então você não conseguirá distinguir as idéias úteis das sem valor. Se todas as idéias tiverem validade igual então você está perdido, porque então, me parece, nenhuma idéia tem validade alguma. Algumas idéias são melhores do que outras. O aparato para distingui-las é uma ferramenta essencial para lidar com o mundo e especialmente com o futuro. E é precisamente a mistura dessas duas modalidades de pensamento que é central ao sucesso da Ciência. Os cientistas realmente bons fazem ambas as coisas. Quando estão por sua própria conta, falando consigo mesmos, eles criam um monte de idéias novas e as criticam sem piedade. A maior parte das idéias nunca chega ao mundo exterior. Somente as idéias que passam por rigorosos filtros pessoais conseguem sair e são criticadas pelo restante da comunidade científica. Acontece às vezes que as idéias que são aceitas por todos acabam por se mostrar erradas, ou ao menos parcialmente erradas, ou ao menos substituídas por idéias mais gerais.
E, se por um lado, naturalmente, existem algumas perdas pessoais – vínculos emocionais a idéias que você mesmo ajudou a criar -, não obstante a ética coletiva é de que toda vez que uma idéia assim cai e é substituída por algo melhor, a Ciência beneficiou-se. Em Ciência, freqüentemente acontece que os cientistas digam, “Sabe, esse é um argumento bom mesmo, minha posição está errada”, e então mudam mesmo de idéia e você nunca mais ouve aquela visão antiga. Isso acontece mesmo. Não tão freqüentemente como deveria, porque os cientistas são humanos e a mudança às vezes é dolorosa. Mas acontece todos os dias, ninguém consegue lembrar qual foi a última vez em que algo assim aconteceu na política ou na religião. É muito raro que um senador, por exemplo, diga “esse é um bom argumento. Vou mudar minha afiliação política.”