Há 45 anos braços fantasmagóricos assombram uma galáxia do tipo espiral: a M106. Espiral tem braços – o que há de sobrenatural nisso? A M106 está a 23,5 milhões de anos luz de distância. Em luz visível, sua morfologia é óbvia, apesar de ela estar meio de perfil. Os braços espirais de uma galáxia são revelados por estrelas quentes e maciças que ionizam o gás a sua volta. Como os braços são formados a partir de ondas de densidade que comprimem o gás, eles são os locais preferenciais de formação de estrelas. Com tantas estrelas se formando ao mesmo tempo, muita radiação é emitida, de modo que dos raios X ao rádio é possível mapear os braços espirais de uma galáxia. (Este é, aliás, um dos tópicos da minha pesquisa: mapear a estrutura espiral da nossa galáxia através da localização de berçários de estrelas maciças. Por que elas? Porque são as mais brilhantes, que poderiam ser vistas em qualquer ponto da galáxia quando observadas no infravermelho).
Voltando à galáxia mal assombrada, tudo ia bem neste cenário até que imagens em raios X mostraram que a M106 possui dois braços que nunca haviam sido observados no visível. Em princípio imaginou-se que eles eram originados de jatos anômalos emitidos de um buraco negro supermaciço no centro da galáxia. Entretanto, imagens em rádio mostraram um outro par de jatos sem conexão com os braços. Uma galáxia que tenha dois pares de jatos é altamente improvável. Com isto, desde a década de 1960 estes braços anômalos representavam um dos mistérios mais duradouros da astronomia.Os braços de M106 podem ser vistos nesta imagem composta: em amarelo está a luz visível, emissão em rádio está em rosa, raios X em azul e infravermelho em vermelho. Os braços normais estão em verde e os anômalos estão em púrpura e azul. Nada a ver, não?
Bom, em 2001 Yuxuan Yang e seus colegas da Universidade de Maryland notaram que os jatos estão inclinados de 30 graus em relação ao disco da galáxia. Mas este é um efeito de projeção da nossa linha de visão em relação a M106, justamente por que a vemos meio de perfil. Descontando o efeito da projeção os jatos se alinham perfeitamente com os braços anômalos. Mistério resolvido? Ainda não. Este alinhamento poderia ser obra do acaso, por que não? Ninguém aí ouviu falar da lei de Murphy?
Para descartar a obra do acaso, Yang e seus colegas propuseram o seguinte cenário: os jatos são emitidos do buraco negro e aquecem o gás pelo caminho, formando um casulo de gás em expansão. Como o jato está próximo do disco da galáxia (na hipótese da projeção) ele deveria aquecer o gás no disco da galáxia gerando ondas de choque que aquecem o gás até milhões de graus, fazendo com que ele brilhe intensamente em raios X principalmente.Agora era preciso testar esta teoria.
A equipe de Yang procurou imagens de arquivo do satélite de raios X XMM-Newton, que possui uma câmera com extrema sensibilidade. A partir destas imagens foi possível medir como a temperatura do gás variava no decorrer do trajeto do jato até formar os braços. Mais ainda, foi possível verificar como os raios X são absorvidos pelo gás da galáxia. Com as contas nas mãos, mais imagens de arquivo foram usadas, desta vez do Spitzer (infravermelho) e do Hubble (visível). As previsões teóricas bateram em cima com o observado. Bingo, os fantasmagóricos e misteriosos braços anômalos são originários de um jato de partículas de alta energia que não parecia ter nada a ver com a história por causa do ângulo desfavorável! Agora, imagens do Chandra, que possui resolução inigualável, mostram como os jatos estão interagindo com gás e mostram como ele interage com o buraco negro central.