
O Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), em 1972, começou a apurar, ainda que de modo incipiente, as principais informações que o consagraria como o instrumento mais requisitado dos detentores do poder para melhor controlar os opositores. Criado oficialmente em 1934, durante o governo de Getúlio Vargas, esse departamento ganhou alento, passando, em outubro de 1935, a catalogar e a acumular fichas de suspeitos de subversão em vários estados do país. Até sua extinção, em 14 de março de 1983, o DOPS sofreu diversas transformações, mas nunca deixou de servir aos interesses diretos dos diversos governos e regimes constituídos, sempre com fins de repressão política.
O acervo paulista do DOPS, composto por mais de um milhão de fichas, milhares de dossiês, pastas e documentos, permaneceu desde então, sob a guarda da Polícia Federal. O processo para torná-lo acessível ao público demandou consideráveis esforços por parte da sociedade organizada, principalmente dos familiares das vítimas, devotados em esclarecer as circunstâncias das mortes de seus entes queridos. Também contribuiu para impulsionar a abertura dos arquivos.
Entretanto, os arquivos só foram liberados para a consulta pública no dia 05 de dezembro de 1994, depois de um exaustivo trabalho de organização e catalogação. Logo se constatou que certos documentos, comprometedores para seus autores – os órgãos de segurança do regime militar – haviam sido manipulados ou subtraídos. Na realidade, poucas provas que os incriminavam ficaram nas pastas. Censuraram os sinais mais graves de violência cometidos. E os registros mais reveladores expedidos pelas Forças Armadas haviam sido desviados. Em que pese a falta de tantos dados, arbitrariamente encobertos, nossa pesquisa, iniciada logo depois da abertura dos arquivos, conseguiu desencavar documentos que trazem informações inéditas à história recente do Brasil, propiciando-nos revê-la de ângulo inusitado.
Porém, antes de analisarmos os mesmos, cabe-nos reportar o papel desempenhado pelos demais órgãos de repressão, inseridos dentro do contexto marcado pelo princípio da doutrina de segurança nacional em vetar o acesso aos documentos referidos. Tal doutrina projetou leis e regras, estendendo-se sobre todos os setores da vida da nação, que demanda sem vigilância e acompanhamento. A entidade máxima do regime, o Conselho de Segurança Nacional (CSN), traçava os objetivos nacionais permanentes e as bases para a política nacional. O Sistema Nacional de Informações (SNI) – a CIA brasileira –, criado para a produção e operação de informações, situava-se logo abaixo do topo da pirâmide ocupado pelo CSN.
Durante os governos militares que mantiveram o Brasil sob ditadura, os serviços de espionagem trabalharam ativamente para tentar descobrir qual era a intenção dos ufólogos brasileiros. Alguns arapongas chegaram a se infiltrar na então Comunidade Ufológica Nacional para averiguar o trabalho de nossos pioneiros — alguns deles chegaram até a ser considerados subversivos para com a Pátria
SEGURANÇA NACIONAL — Criado em 13 de junho de 1964, logo após o golpe militar, o SNI objetivava superintender e coordenar, em todo o território nacional, as atividades de informação, em particular as que interessassem à Segurança Nacional. O peso do SNI conferia ao seu comandante o status de ministro, além do privilégio de compor o Grupo dos Quatro, que mantinha encontro diário com o presidente da República. Desse posto saíram dois dos presidentes militares do regime de 1964: Emílio Garrastazzu Médici e João Batista Figueiredo. O SNI mantinha, em complemento à Agência Central sediada em Brasília, oito agências regionais. Só para os gastos dessas agências, a dotação das verbas cresceu 3.500 vezes de 1964 a 1981.
Na esteira dessa expansão, surgiu a necessidade de uma integração entre os organismos repressivos já existentes – ligados às Três Armas e às polícias estaduais e federais – para melhorar a eficiência dos mecanismos de repressão e controle. A integração pôde ser testada pela primeira vez em São Paulo, em meados de 1969, quando foi criada a Operação Bandeirantes (OBAN), mantida com recursos fornecidos por multinacionais. Formalmente, ela não se vinculava ao 2° Exército, embora seu comandante, o general Canavarro Pereira, visitasse regularmente o 36° Distrito Policial, em São Paulo – delegacia que servia de sede e que se tornou o mais conhecido centro de torturas do país.
A OBAN foi composta por efetivos do Exército, Marinha, Aeronáutica, políticos, departamento da Polícia Federal e Civil, força pública, enfim, todos os tipos de organismos de segurança e policiamento. Sem estrutura legal, o novo organismo paramilitar ganhou mobilidade – e impunidade quanto aos métodos – e garantiu vitórias essenciais na luta contra a subversão. Tais êxitos levaram as altas esferas responsáveis pela Segurança Nacional a considerarem aprovado o teste.
O tipo de estrutura da OBAN serviu de inspiração para a implantação, em escala nacional, de organismos oficiais que receberam a sigla DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna). Comandados por oficiais do Exército, os DOI-CODI passaram a ocupar o primeiro posto na repressão política e na lista das denúncias sobre violações aos direitos humanos. Mas, tanto os DOPS como as delegacias regionais da Polícia Federal prosseguiram em faixas próprias de atuação.
ESTRAT&E
acute;GIA REVOLUCIONÁRIA — As perseguições, cassações, punições, torturas e assassinatos foram, dessa forma, institucionalizados, tornando-se parte essencial da estratégia revolucionária, permitindo afastar da máquina estatal todos os indivíduos que suscitassem desconfianças. A paranóia em curso não só levou a criação de aparatos para enfrentar os supostos aliados de Moscou, como também produziu situações absurdas, dignas de inspirar Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta.
Há alguns exemplos indiretos, como o da perseguição sofrida pelo Partido Operário Revolucionário Trotskista (PORT) – o mais importante agrupamento dessa linha no Brasil –, fundado em 1953 sob influência da curiosa figura de J. Posadas. Durante muitos anos, o PORT publicou em seus volumes o periódico Frente Operária – ensaios atribuídos a Posadas –, divagando por questões tão ecléticas quanto a chegada de discos voadores ao planeta Terra e a vida sexual dos revolucionários. Posadas era responsável pelo Birô Latino-americano da IV Internacional, fundada por Trotsky no México, em 1938.
Na época em que os ufólogos foram investigados, o aparelho repressivo já havia liquidado quase todas as organizações de guerrilha urbana. O conteúdo desses documentos revela, de modo inusitado, que a motivação inicial para o monitoramento dos fatos relativos aos UFOs ligava-se menos às implicações políticas já advindas do que ao fenômeno em si. Só posteriormente é que as autoridades passaram a manifestar dúvidas quanto às reais atividades dos ufólogos envolvidos.
Conforme uma carta com o timbre da Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Pública, emitida pela Delegacia de Polícia de Guarantã (SP), em 11 de setembro de 1974, dirigida ao diretor do DOPS e assinada pelo delegado de polícia daquela cidade, doutor Hermínio José Theodoro, tratava-se primeiramente de “tentar, por todos os meios, conseguir algum esclarecimento com relação ao contínuo aparecimento dos tão comentados discos voadores”.
MARCADO POR ESTIGMA — Lidar com assuntos considerados bizarros pela maioria implica em ficar marcado por um estigma. A opção é entendida como um sinal de afastamento dos atributos comuns e naturais ao ser humano. Tornar-se-iam esses ufólogos, portanto, fortes candidatos a serem apontados como loucos ou desregrados. A situação especial do estigmatizado é que a sociedade lhe diz que é membro do grupo mais amplo – o que significa ser humano normal –, mas também que é, até certo ponto, diferente, e que seria absurdo negar essa diferença.
A diferença em si deriva da sociedade, porque em geral, antes que uma diferença seja importante, ela deve ser coletivamente conceitualizada pela sociedade. Cumpre-nos complementar os dados a respeito dos ufólogos citados, quase todos são pioneiros no estudo do Fenômeno UFO no Brasil. Juntos pesquisaram, desde a década de 50, centenas de casos tornados clássicos e publicaram uma grande quantidade de artigos, reportagens, boletins, revistas e livros, inclusive no exterior. Proferiram também dezenas de palestras e conferências.
Esses ufólogos sempre pautaram uma linha de abordagem estritamente científica e propugnaram a crença na existência de visitantes extraterrestres. O médico Walter Karl Bühler, natural da Alemanha, imigrou para o Brasil em 1933. Fez curso de Aplicação no Instituto Osvaldo Cruz e tornou-se livre docente pela Cadeira de Clínica Cirúrgica da Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil. Em 1957, fundou a Sociedade Brasileira de Estudos de Discos Voadores (SBEDV) – uma das primeiras entidades do gênero a surgir no país [O doutor Bühler veio a falecer no mês de junho deste ano].
Já o professor Flávio Augusto Pereira presidiu a Comissão Brasileira de Pesquisa Confidencial dos Objetos Aéreos Não Identificados (CBPCOANI), o Instituto Brasileiro de Astronáutica e Ciências Espaciais (IBACE) e a Associação Brasileira de Estudos das Civilizações Extraterrestres (ABECE), entidades igualmente precursoras. Flávio é autor da obra O Livro Vermelho dos Discos Voadores. Prefaciou também o famoso livro de Erich von Däniken, Eram os Deuses Astronautas? Entretanto, Carlos Jacchieri, professor de História da Cultura e artista plástico, escreveu Os Deuses não eram Astronautas, rebatendo as teorias do livro prefaciado por seu colega.
O professor Willi Wirz era correspondente da revista norte-americana Flying Saucer Review e se dedicou de modo destacado à “elucidação de vários casos importantes”, conforme ele próprio declarou aos inquiridores. Participou do Sistema de Investigação dos Objetos Aéreos Não Identificados (SIOANI), órgão oficial do IV Comando Aéreo Regional (COMAR) de São Paulo e vinculado ao Ministério da Aeronáutica, criado em 1969 pelo major brigadeiro José Vaz da Silva, com objetivo de estudar sigilosamente o fenômeno. Por fim, o médico Max Berezovsky que, durante a década de 70, presidiu a Associação de Pesquisas Exológicas (APEX) – entidade modelo que inspirou o surgimento de inúmeros grupos baseados nos mesmos moldes.
A APEX costumava conclamar vigílias nacionais através da imprensa, no intuito de detectar as áreas e os períodos de maior incidência de aparecimento dos UFOs. O Estado brasileiro, ao promover o monitoramento de todas as atividades que julgasse suspeitas, não poupou nem mesmo os indivíduos que estavam longe de oferecer qualquer perigo à ordem política brasileira. Ou seria o assunto dos discos voadores que colocava em risco a segurança nacional? De qualquer modo, o fato é a confirmação da conduta paranóica de setores engajados na manutenção do status, em meio a uma guerra ideológica travada sem trégua, estendida em todos os âmbitos.
ESPIONAR UFÓLOGOS — Um momento de violência injustificada de violação dos direitos humanos. Dentre as inúmeras facetas do regime militar, acabamos conhecendo mais uma. Entre os anos 60 e 80, além de promover a censura à correspondência, o controle das universidades, colégios e redações de jornais, o monitoramento de quaisquer atividades que julgasse suspeitas e a perseguição de ativistas políticos, também tratariam de espionar ufólogos.
Até agora, Max Berezovsky fora o único, dentre os implicados, a ver de perto os documentos encontrados. Certamente, muitos detalhes poderiam ainda ser acrescentados aos episódios pelos seus protagonistas, exceção feita a Willi Wirz e Walter Bühler, já falecidos. Em vários estados do país, os arquivos do DOPS estão sendo abertos, com documentos e fotos que abrangem mais de 50 anos da história da repressão política no Brasil. O que eles revelam? É imprescindível trazer à tona todos esses fatos acobertados para que a verdade histórica seja restabelecida.< /p>