Maio de 1984. Era noite fria de inverno em Campina Grande, cidade serrana do interior paraibano. Um garoto de 14 anos acabara de ver no céu um estranho e fugaz disco luminoso multicolor que logo se esconderia na nebulosidade que costuma estar no lugar mais indevido. Estupefato, experimentou um dos grandes momentos de sua vida. A emoção é um estado subjetivo fugaz, como aquela visão celeste, mas seus efeitos podem ser duradouros. No dia seguinte ele se tornaria um ufólogo e, três décadas depois, se via diante de um texto a produzir sobre aquele dia, e tantos outros em que foi ufólogo. Seria sim uma escrita sobre ciência, mas contendo alma, uma alma maior, a da própria Ufologia.
Haveria de ter argumentos e também postura ética. Partiria de memórias para ir na direção de esperanças profundas. Esse texto, no limiar entre a ciência, a vida e a poesia, é justo o presente artigo, que se propõe a revisitar a Ufologia pelo lado de dentro, com o auxílio das lentes da psicanálise, especialidade do autor, que já não é mais ufólogo — mas que de certa forma nunca deixará de ser. O que se tratará a seguir tem a ver com todos que fizeram e fazem a própria história do movimento ufológico, emprestando suas razões e seus sonhos a esse empreendimento coletivo, um entre tantos preciosos exemplos da aventura humana sobre um mundo a conhecer.
A Ufologia e o mal entendido
Diz a sabedoria de vida que uma experiência é verdadeira quando produz consequências. Um sonho, um temor, uma alegria, todos esses fenômenos subjetivos seriam verdadeiros na exata medida em que ajudam a significar a vida, fazendo acontecer coisas, decisões e renúncias. Mas em certo sentido a educação nos deseduca e aprendemos a exigir mais da verdade — talvez mais do que ela possa oferecer. Quando pensamos na expressão “verdade”, por exemplo, já não nos contentamos com nossas certezas íntimas. O conhecimento “certo e distinto”, como diria Descartes, será então “o” caminho ou o desvio, como se queira, na busca de uma verdade imanente que habitaria a alma do mundo. Este é o método e um dos triunfos da razão humana, para cuja análise retrospectiva precisamos, agora, nos remeter a algumas das matrizes empoeiradas do nosso pensamento ocidental.
Segundo a filósofa Marilena Chauí, o que nós entendemos por “verdade” corresponde a uma encruzilhada entre três estradas culturais. Do mundo hebraico herdamos a verdade enquanto revelação [Emunah], dos gregos a recebemos como desvelamento [Aletheia] e dos latinos como acontecido [Veritas]. Este último sentido tem conotações jurídicas que remetem à realidade dos fatos, aos acontecimentos que são verdadeiros ou falsos. A verdade grega — buscada por filósofos e depois também por cientistas —, por outro lado, remete não às narrativas, mas às coisas em si mesmas, alcançadas a partir do desvelamento, ou seja, da retirada dos véus que as ocultavam. Quanto à emunah, a verdade revelada, é aquela que se dá em uma experiência mística, quando o sentido da vida como um todo, ou um de seus aspectos importantes, cai dos céus ante um espírito aprendiz. “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”, está no texto bíblico João 8:32.
Em nossa busca por uma verdade para a Ufologia não restará dúvida de que a verdade enquanto veritas é a condição inicial para qualquer afirmação, pois é preciso que algo tenha acontecido de fato para que possa se tornar objeto de um saber. O contrário disso seria a mentira e o erro — falsos depoimentos, fotomontagens, erros de interpretação etc. Assim, excluídas as hipóteses de equívoco e má fé, restam-nos as outras duas formas de verdade objetiva que conhecemos: a revelada e a desvelada. De acordo com a maioria das interpretações contemporâneas, mais do que partilharem um ponto comum desde a modernidade, do século XVII em diante, essas formas de verdade mais parecem linhas de fuga que nos levam aos inconciliáveis mundos da religião e da ciência, respectivamente.
Na história da Ufologia esta oposição é muito evidente: a dita Ufologia Científica versus a chamada Ufologia Mística. Aos ufólogos científicos restariam os métodos observacionais e experimentais das ciências naturais, e a premissa de que os UFOs seriam artefatos tecnológicos produzidos por civilizações alienígenas. Aos ufólogos místicos, os métodos intuitivos e transcendentais das religiões, e a crença de que a vivência ufológica participa como caso particular do grupo maior de experiências espirituais, com finalidades iniciáticas e morais. Entre uns e outros há apenas o abismo e o silêncio eterno do mal entendido.
Uma verdade que seja subjetiva
Parece que chegamos a uma aporia, um beco filosófico sem saída. Ou melhor, dois becos sem saída, paralelos entre si, excludentes e irreconhecíveis. Concordaria com essa imagem caso não conhecesse um elemento mediador entre esses dois universos, precisamente o psíquico. Assim, mais do que becos paralelos, podemos pensar em uma única realidade, porém com dois ângulos de visão, como uma grande colcha de retalhos com dois lados, que chamamos de Ufologia Científica e Ufologia Mística. Na mesma metáfora, o lugar comum, o fio condutor, seria a linha que costura e que, ao costurar, faz surgir ambos os lados. A linha é o psiquismo humano, a “tela de projeção” onde se passam todos os acontecimentos, todas as vivências — sejam elas classificadas como científicas ou místicas. Enquanto acontecimentos são, portanto, fatos, ocorrências verdadeiras, veritas, com toda a dignidade que merecem possuir.
Mas para os espíritos de bom senso — para mencionarmos novamente Descartes —, algo de inadmissível existirá nessa linha de raciocínio. Se todo evento mental devesse ser considerado verdadeiro, isto incluiria, em um extremo, aqueles reconhecidos como psicopatológicos, a exemplo das alucinações, campo consensualmente oposto ao da realidade. A saída mais fácil para este impasse é velha conhecida: exclui-se da ciência a subjetividade, o psíquico e suas vivências. Nada mal se não corrêssemos o risco, com isto, de jogar fora o bebê junto com a água do banho…
Assim, mais do que becos paralelos, podemos pensar em uma única realidade para o Fenômeno UFO, porém com dois ângulos de visão distintos, como uma grande colcha de retalhos com dois lados, que chamamos de Ufologia Científica e Ufologia Mística
Assumindo outros riscos, diremos que é assim que as coisas são, inclusas aquelas mentais. Mesmo na alucinação mais disparatada há aí uma verdade, a verdade subjetiva de quem
alucinou e viu com os “olhos da mente” as coisas que não gostaria de ver, mas que dormem em seu espírito. Por mais que queiramos aprisionar a verdade como veritas, aletheia e emunah, algo sempre lhe escapará, por dentro. Em nossa viagem em busca de uma verdade para a Ufologia, é recomendável navegar um pouco mais pelos mares profundos da epistemologia, a parte da filosofia que cuida da validade dos conhecimentos. Tomemos o conhecimento científico como exemplo. Primeiramente precisamos compreender que o que se chama de ciência não é um monólito ou um conjunto de procedimentos certos, que, uma vez dominados e repetidos, conduzirão à verdade desvelada. Hoje reconhecemos a existência de três diferentes grupos de ciência, cada qual com seus métodos e critérios de verificação que, no entanto, podem se interpenetrar: as formais, as naturais e as humanas. Só se conhecem duas ciências formais, a matemática e a lógica, que têm como critério de verdade a coerência, ou seja, seus raciocínios precisam ser perfeitos, lógicos, como quando dizemos que dois mais dois é igual a quatro ou que o todo é maior que a parte.
Subjetividade coletivizada
As ciências naturais, que englobam a física, a química, a biologia etc, têm como critério de verdade idealizado a correspondência, ou seja, seus enunciados devem corresponder da forma mais precisa possível àquilo que se observa na natureza. Muitas vezes as ciências naturais tomam de empréstimo, ainda, ferramentas das ciências formais, como no caso do consagrado uso da matemática pela física, desde Galileu. Já as ciências humanas compreendem o vasto campo dos saberes que tomam o homem como objeto, indo desde a psicologia e a sociologia até a linguística, a história etc. Quem poderá predizer com exatidão matemática ou com certeza lógica que acontecerá uma revolução em certo país em dado momento? O Brasil foi descoberto ou invadido? A iniciação sexual precoce faz bem ou mal ao desenvolvimento psíquico? Enfim, nas ciências humanas o critério de verdade não será a coerência e nem exatamente a correspondência, mas o consenso simbólico, significados socialmente partilhados que valem como verdade enquanto seu uso seja mantido em uma certa comunidade científica. Assim, nas ciências humanas há também a preocupação com a generalização, embora definida consensualmente através de uma subjetividade coletivizada.
Até aqui tudo bem. Poderíamos pensar que enquanto as ciências humanas operam com seu critério de consenso simbólico, a Ufologia — ao menos a Ufologia Científica — deveria continuar sua pesquisa nos moldes das ciências naturais, observando, fotografando etc. Mas talvez as coisas não sejam tão simples e esquemáticas assim, pois mesmo nas ciências naturais o elemento humano se faz insinuar. Pensemos na astronomia. Nada mais objetivo do que o espaço exterior. Nada mais propício ao emprego puro dos métodos das ciências naturais, com sua busca por correspondência. Mas será que tudo na astronomia é tão objetivo assim? Não sabemos que muitos dos nossos planetas e constelações têm nomes de deuses e outros seres mitológicos? Mais do que isso, muitas verdades nas ciências naturais são resultados de decisões humanas. O melhor exemplo disso podemos extrair de um curioso fato cósmico recente: o descredenciamento de Plutão da categoria de planeta, rebaixado à condição de planeta anão, em 2006.
A decisão aconteceu por consenso entre especialistas reunidos em um evento científico que redefiniu os critérios do que seria um planeta, o que não deixou de gerar protestos em defesa do astro e até acusações de heresia científica. Plutão, julgado à revelia, continuaria a viajar pelos confins do Sistema Solar, mas nunca mais seria o mesmo. Nada disso, no entanto, diminui a importância da pesquisa empírica, da busca pelo desvelamento [Aletheia], do refinamento dos conceitos em respeito ao princípio de correspondência. Mas coisas assim nos chamam a atenção para o fato de que toda ciência é humana, pois é feita pelo homem, para fins humanos, porque se utiliza inclusive da linguagem — ferramenta humana indissociável da própria estrutura de funcionamento do pensamento, como nos ensinam a psicologia do desenvolvimento, a filosofia da mente e a linguística.
Psicanálise e a verdade do desejo
O que será proposto a seguir é um exercício de imaginação. Se o leitor é ufólogo místico, provavelmente já conheceu pessoas chamadas de contatadas, que afirmam manter comunicação com ETs, recebendo mensagens de alerta sobre os riscos de uma guerra nuclear, ou, em um discurso mais contemporâneo, sobre a catástrofe ecológica que se anuncia, em face dos nossos hábitos deletérios de consumo. Talvez o próprio leitor já tenha tido uma experiência assim e compartilhe com seus pares muitos desses ensinamentos. Mas se é um ufólogo científico, certamente vive cercado de instrumentos de observação, registro, medição e detecção, compartilhando com seus pares experiências próprias em vigílias e acampamentos de pesquisa, bem como colecionando uma infinidade de dados resultantes de entrevistas com pessoas que avistaram UFOs.
Bem, o exercício proposto é o seguinte: mantenha suas crenças, suas premissas e seus procedimentos. Preserve tudo isso que faz parte de sua identidade enquanto ufólogo. Mas, ao mesmo tempo, só por um momento — como o tempo da leitura deste texto —, coloque tudo isso entre parênteses, como fazemos ao longo do dia quando vamos resolvendo as coisas, enquanto mantemos em suspenso tudo que sabemos sobre nós mesmos, nossas inquietações, anseios etc. Ou ainda quando assistimos a um filme onde a ficção toma a cena, a “tela” do nosso psiquismo, jogando para um canto tudo que somos e todo o resto do mundo. Pois então, ponha entre parênteses sua identidade ufológica e observe aquilo que ficou de fora, especialmente aquilo que mesmo não sendo da Ufologia, talvez tenha alguma relação com a Ufologia. Procure perceber que independentemente do quanto o leitor possa crer na realidade, objetividade e externalidade de suas pesquisas ufológicas, elas serão sempre e antes de tudo isso, suas experiências e, portanto, subjetivas. De que lugar as vê?
Segundo nossa tradição, foi Sócrates, no século IV a.C., o pioneiro na busca por esse lugar de onde se fala em primeira pessoa; a morada da subjetividade. Sua filosofia ética e sua máxima “Conhece-te a ti mesmo” (na verdade inspirada
pelo portal do Oráculo de Delfos) reverberaria pelos séculos em um apelo humanístico contagiante. Santo Agostinho, oitocentos anos depois, confidenciaria o hábito de colocar seu dia entre parênteses para avaliá-lo, em um legítimo gesto de reflexão filosófica, direcionada ao seu aperfeiçoamento moral. No Renascimento dos séculos XV e XVI a máxima do antigo sofista grego Protágoras “O homem é a medida de todas as coisas” seria finalmente restaurada, pondo-se o homem no centro do universo.
Cuidar das almas atormentadas
Nunca a subjetividade fora tão cultivada como nessa época, e seus ecos se estendem até os nossos dias. Portanto, de que lugar você vê as coisas? O século XIX, embebido pela subjetividade, será o palco para o surgimento das ciências humanas, dentre elas a psicologia, cujo objeto de estudo inicial era a consciência do homem, justamente aquela “tela de projeção” de vivências íntimas já referida. Na mesma época apareceria outra disciplina científica, híbrida, algo entre a medicina e a própria psicologia, cujo nome se cercaria de toda uma aura de mistério e incômodo: a psicanálise. Sua missão seria cuidar das almas atormentadas pelo desconhecimento de si, pois que não adoecemos apenas de lesões e agentes infecciosos, mas também de ideias — mesmo ideias esquecidas ou que preferimos um dia esquecer.
É por preferirmos esquecer nossas dores, nossos questionamentos mais profundos, que nos tornamos neuróticos, psicossomáticos e deprimidos. O sintoma ocupa o lugar da vida. É porque o espelho causa medo que embarcamos nas “soluções” fáceis do álcool, das drogas, dos ansiolíticos, dos antidepressivos, do consumo compulsivo, da panaceia da autoajuda etc. Talvez isto explique também algo bastante desconcertante: que a psicanálise seja tão pouco referida na Ufologia, quando sua matéria-prima, a subjetividade, é o ponto de referência de todo o fazer humano, incluindo o fazer ufológico. Até se fala em Jung, mas praticamente nada existe na literatura ufológica sobre Freud e a psicanálise. Parece que é chegada a hora de uma anamnese na Ufologia. De que lugar vemos o mundo?
Diferentemente da maioria das escolas psicológicas, que tinham a consciência como objeto de estudos, o austríaco Sigmund Freud descobriu que nossa subjetividade não seria uma unidade centrada na figura do eu, mas um conjunto de instâncias distintas em que apenas a sua parte mais superficial guardava relações com a consciência. À camada mais profunda do psíquico ele chamou de inconsciente, região mental onde se acumulam todas as nossas vivências — notadamente as infantis — que tenham sido impedidas de retornarem à luz da consciência, em face de seu conteúdo censurável e carregado de conotações sexuais e agressivas, próprias de um estranho mundo povoado por sensações ultraintensas, que acompanhavam a criança em seus primeiros anos. Apesar de esquecidas e recalcadas, essas vivências proliferam nas sombras e costumam vir à tona, em absoluto descaso para com nossa vontade, seja toda noite através dos sonhos, seja por meio dos sintomas de que falamos ou através do modo como nos relacionamos com o mundo. Enfim, o modo como configuramos nosso desejo.
Consensos simbólicos
Até aqui está claro que a psicanálise, surgida no contexto sociocultural onde floresciam as ciências humanas, também tomou o homem como seu objeto de estudo — e não seria errôneo dizer que seu grande construto teórico tenha se erigido principalmente através de consensos simbólicos. Porém, mais que uma teoria geral do funcionamento psíquico, a psicanálise é uma prática clínica, uma ética fundada não no generalizável, mas naquilo que nos é mais íntimo, pessoal e verdadeiro: nossa subjetividade. É a alma humana individual que produz seus discursos e seus sonhos, e só o sonhador poderá interpretá-los. Dissemos sucintamente que o inconsciente é a matriz dos sonhos, sintomas e dos modos de nos relacionarmos com o mundo.
Escaparia ao presente artigo explorar o admirável estudo que Freud fez do mundo onírico, através de sua obra inaugural A Interpretação de Sonhos, de 1900. Quanto aos sintomas, também fugiria ao presente artigo uma maior exploração de toda a nosografia e psicopatologia psicanalítica, que inclui os transtornos neuróticos, as perversões e as psicoses, embora algo possa ser dito, de passagem, sobre isto naquilo que possa se relacionar com a Ufologia. Sabemos que algumas experiências ufológicas presentes na casuística podem estar associadas a quadros psicopatológicos caracterizados por alucinações [Erros de percepção] e delírios [Erros de julgamento], capazes de construir complexos enredos, que exigem muito mais uma pronta intervenção psicológica e médica do que uma abordagem ufológica. Nesses casos, embora reconheçamos que a vivência constitua para o sujeito uma realidade subjetiva inquestionável, se ela se faz acompanhada de riscos em termos de saúde mental, com prejuízos pessoais, sociais, profissionais, o encaminhamento de urgência será o procedimento correto. Esse tipo de reflexão cautelosa, aliás, já vem sendo feito há tempos na literatura ufológica, o que é um bom sinal.
Se do inconsciente brotam os sonhos e os sintomas, buscaremos em outra forma de emergência de nossa psicologia profunda os elementos para o presente estudo. Essa outra manifestação do inconsciente — e isto é o que nos interessa aqui — a psicanálise chama de desejo. Segundo a psicanálise, desejamos porque algo nos falta, e faltará sempre, senão pararíamos de desejar. O desejo é essa busca por um objeto de satisfação. É por isso que a psicanálise fala da sexualidade infantil, tema tão mal compreendido em geral, e que em suma significa, de início, o registro de uma experiência prazerosa, cuja intensidade é proporcional à situação de desprazer que cuidou em eliminar. A marca psíquica de um prazer máximo, supostamente infinito, já está lá, impregnada em nosso psiquismo como um acontecimento mítico, algo que só poderia ser descrito como um verdadeiro paraíso perdido, pois nunca mais experimentaríamos novamente aquela vivência de satisfação.
Movidos pelo desconhecido
O desejo humano foi montado a partir de uma falta, de uma carência, e que se dirige a objetos que, entre
tanto, serão sempre insuficientes para conferirem a satisfação plena, aquilo que finalmente nos daria a felicidade. E assim a vida segue. Quando recém-nascidos, desejamos o leite, desejamos a voz da mãe, desejamos falar, e logo queremos estudar, fazer amor, ter filhos, construir uma profissão etc. O capitalismo, sabendo disso, muitas vezes nos ilude, vendendo supostos objetos ideais para o desejo, mas isso já é outra história…
Na epistemologia é clássica a separação — hoje bastante relativizada — entre sujeito e objeto do conhecimento. Mas a experiência de conhecer não é coisa só de filósofos e cientistas, é algo que se inicia desde a primeira infância. Um bebê, por exemplo, sujeito do conhecimento — e paralelamente sujeito de desejo —, se dirige ao mundo dos objetos que desejará conhecer e apreender. A psicanálise nos ensina que entre o sujeito e o objeto está o desejo, que é o mediador desse encontro, que, como vimos, será sempre incompleto. O modo como o desejo inconsciente irá mediar o encontro com o objeto será necessariamente singular — valerá para cada sujeito em específico, conforme sua história de vida e suas vicissitudes. O que nos faz gostarmos de pessoas com estas ou aquelas características? O que nos faz querer certa profissão e não outra? O que nos faz nos sentirmos movidos pelo desconhecido? O que nos faz procurarmos por UFOs ou deuses pelos céus?
Se o leitor é ufólogo místico, provavelmente já conheceu pessoas chamadas de ‘contatadas’, que afirmam manter comunicação com ETs, recebendo alertas sobre os riscos de uma guerra nuclear, ou, em um discurso mais contemporâneo, sobre uma catástrofe ecológica
Carl Jung, que por alguns anos foi discípulo de Freud, escreveria tempos depois que os UFOs poderiam ser um mito moderno, uma espécie de projeção mental no espaço exterior a partir das necessidades humanas de uma força superior, celestial, que lhe restaurasse a alma dividida. Bem ou mal aceita pela Ufologia, esta interpretação procura explicar o que são os UFOs, o que é bem diferente do percurso que estamos fazendo com Freud, uma tentativa de compreender não o que são os UFOs, mas o que são os homens — o que somos, portanto, inclusive enquanto ufólogos.
Falávamos do desejo como essa força inconsciente que nos impele na direção de objetos de satisfação. O modo singular como o desejo se materializa em nosso cotidiano a psicanálise chama de fantasia. Assim, no encontro do exemplificado recém-nascido com o seio da mãe, mediará a fantasia. No encontro do místico com o sagrado, também mediará a fantasia. No encontro do cientista com seu enigma, igualmente mediará também a fantasia. Ou seja, a fantasia estará lá onde estiver um ufólogo místico sinceramente devotado a um saber que lhe transcenda, como estará também no ufólogo científico às voltas com suas dúvidas, hipóteses e pesquisas.
Curiosamente, talvez apenas o psicanalista e o ufólogo saibam que o objeto do desejo é algo da ordem do impossível. Talvez não seja por outro motivo que o objeto do desejo para o ufólogo tenha que ser marcado pela insígnia do “não identificado”, de objetos voadores não identificados. No inconsciente as coisas também são não identificadas, ou são mal identificadas e ainda “desidentificadas”. Por baixo daquilo que pensamos que somos, algo vive e quer poder falar.
Pelo desejo de cada um
Onde estariam os longínquos traços do desejo que moveu aquele adolescente, que na calçada de sua casa em Campina Grande, em 13 de maio de 1984, às 20h10, viu, em um átimo de tempo, um sinal dos céus? Por que um instante assim tão efêmero o arrebatou com tanta força, como um sismo psíquico que ainda hoje reverbera nas camadas mais profundas do seu ser, e que vem à tona no desejo de escrever? A história de cada um é também a história de sua verdade, de seu desejo e de sua fantasia. É, portanto, de sua ficção. Se a vida é uma obra de arte, um grande teatro tragicômico, na psicanálise nosso personagem íntimo desfila a esmo, vagueando por entre interrogações em busca de algo que constitua sentido.
Assim, é de se perguntar: e se aquele garoto de 14 anos, muito antes de ter visto seu disco voador, tivesse sido abduzido pelo “não identificado”? E se em uma autoanálise ele descobrisse, relembrando, que quando criança seu pai lhe dizia que Papai Noel viria em uma nave espacial? E se aquele momento natalino fosse para ele tão importante, a espera de um ano inteiro por um encontro diferente e mágico com o pai, não o Noel, mas aquele que lhe deu a vida, que lhe contou histórias e lhes transmitiu valores e medos, assim como as sombras e seus efeitos? E se uma simples coisa assim, tão banal e tão luminosa aos olhos de uma criança, se tornasse um mito interior, uma fonte infinita de energia e impulso, capaz de se espalhar pelo tempo, conferindo as coordenadas para um desejo que quer encontrar algo porque quer se reencontrar?
Cada um faz seu caminho
Nada disso retira os méritos, desfaz os enganos e invalida as descobertas de uma busca exterior e objetiva de um conhecimento que possa se dizer ufológico. Mas tudo isso não teria brilho se não houvesse em nossos pontos de partida a baliza do desejo, e isso se deve reconhecer. É certo que cada um faz seu caminho, como o colega ufólogo que, desejando a paz e o amor, encontra verdadeiramente nos UFOs uma promessa. Ou ainda como o colega que, desejando provas, catalogará inúmeras fotos, anotações, relatórios etc, pelo puro desejo de provar o que crê. Haverá ainda aquele outro que, diante do inusitado e cercado de medo, mesmo assim perseverará, sem atinar que quem teme por algo de ruim espera, e que esperar por algo é quase o mesmo que desejar.
Parece que o tempo do ufólogo é mesmo o belo tempo da espera, uma espera indefinida, que tem algo do desejo que, como o arco-íris, se distancia cada vez que se tenta chegar lá — e que nunca cessará de se repetir porque sempre nascerão novos arco-íris. Mas o tempo de um texto é outro e agora é tempo de concluir este. Indo embora, mas deixando algo, o desejo deste autor é que possa ficar do seu artigo aquilo que é essencial. Não apenas interrogamos o mundo fazendo ciência, filosofia e religião — a vida também nos interroga a partir de dentro. Como sugere a psicanálise, ouçamos as perguntas da vida e nos questionemos sobre o que queremos de verdade ao longo de uma existência, que no fundo é breve e que misteriosamente incorporou em nós, ufólogos e ex-ufólogos, esse objeto fantástico que nos captura em sua estranheza, o “não identificado”.